A experiência dos representantes do sistema judiciário
e suas relações com os habitantes das comarcas na região Norte de Goiás
(1870-1900)*
Resumo
Este estudo é resultado parcial de pesquisa realizada em documentos do
Poder Judiciário referidos à região Norte do Brasil (1870-1900). Nosso objetivo
é caracterizar e discutir a experiência dos agentes do sistema judiciário e
suas relações com os habitantes da província de Goiás. Analisamos três
processos de denúncia crime contra Domingos Batista de Araujo, promotor público
acusado de improbidade e vítima de dois supostos
espancamentos. À luz de intensiva pesquisa em jornais publicados na região,
procuramos restabelecer as motivações dos envolvidos e recompor a situação
funcional dos agentes citados nos autos.
palavras-chave: Brasil, Província de Goiás, poder judiciário,
processos-crime, metodologia.
Referencia para citar este
artículo: CÁSSIA GUIMARÃES
MELO, Rita de (2017). “A experiência dos representantes do sistema judiciário e
suas relações com os habitantes das comarcas na região Norte de Goiás
(1870-1900)”. En Anuario de Historia Regional y de las Fronteras. 22
(2). pp. 49-69.
The Judicial System Representatives Experience and
Their Relations With The Inhabitants of The Northern Districts of Goias
(1870-1900)
Abstract
This work is the partial result of the research made from documents of
the judiciary regarding Goias province (1970-1900). Our purpose is to
characterize and discuss the experience of the representatives and the
relations they established with the inhabitants of the judicial districts at
the province of Goias. In this essay, we analyze three processes involving
Domingos Batista de Araujo, a public prosecutor victim of two alleged beatings
and an accusation of dishonesty. Based on an intensive research in newspapers
published in that region, we sought to reestablish the motivations of the
involved in the process and rebuild the functional situation of the agents
quoted in the processes.
Keywords: Brazil, Goias Province, Law Power, Criminal
Processes, Methodology.
La
experiencia de los representantes del sistema judicial y sus relaciones con los
habitantes de los distritos en la región Norte de Goiás (1870-1900)
Resumen
Este estudio es el resultado
parcial de una investigación realizada a partir de documentos del poder
judicial referidos a la región Norte de Brasil (1870-1900). Nuestro objetivo es
caracterizar y discutir acerca de la experiencia de los agentes del sistema
judicial y sus relaciones con los habitantes de la provincia de Goiás.
Analizamos tres procesos de denuncia contra Domingos Batista de Araujo, fiscal
acusado de improbidad y víctima de dos supuestas golpizas. A la luz de una
investigación intensiva en periódicos publicados en la región, buscamos
reestablecer las motivaciones de los implicados y recomponer la situación
funcional de los agentes citados en los autos.
Palabras clave:
Brasil, Provincia de Goiás, poder judicial, proceso criminal, metodología.
Introdução
Este artigo faz um recorte da pesquisa ainda em andamento, alimentada
pelos documentos judiciais circunscritos à região Norte da província de Goiás,
entre os anos 1870 e 1900. O que se pretende aqui é compreender as
determinações da prática jurídica objetivada em processos de denúncia que
envolveram os representantes da Justiça e da administração pública em geral.
A pesquisa em documentos judicias demanda do estudioso
conhecimento de áreas frequentemente pouco visitadas, como a sociologia e a
filosofia do direito, bem como a história contextualizada dos códigos
processual e penal e da literatura a eles referida(1).
De um lado, o trato com as fontes judiciais tem
exigido uma formação suplementar sobre direito e jurisprudência. A pequena
bibliografia histórica sobre o funcionamento da justiça fornece elementos
importantes, mas o percurso para aquisição de conhecimentos nesta área tem sido
realizado frequentemente de modo solitário, através de uma bibliografia de época,
ou muitas vezes a partir da própria leitura do material processual. Ao mesmo
tempo, estas dificuldades têm levado os pesquisadores a entrar em contato mais
direto com os personagens que habitavam os tribunais (letrados, advogados,
procuradores, curadores, depositários etc.) e com o modo da construção dos
argumentos jurídicos na prática procesual(2).
Supriu-se a falta de formação complementar, aplicando
à documentação uma leitura criteriosa sustentada pelo conhecimento da
historiografia nacional e regional sobre o tema e o cruzamento das fontes
processuais com a busca de informações complementares nos periódicos e
relatórios administrativos produzidos no século XIX(3). Esse caminho
se justifica, uma vez que a importância do conhecimento das leis de determinado
período não alcançam, ou melhor, não dão a ver a prática efetiva dos
responsáveis por aplicá-las. Há, pois, uma certa inadequação entre os códigos e
sua efetiva aplicação, procedimento comum na grande parte do território
brasileiro do século XIX.
Estudos realizados sobre o tema nas regiões litorâneas
do Brasil, onde os ocupantes dos cargos da Justiça eram bacharéis em Direito,
revelam que a aplicação das leis e da jurisprudência brasileira era um “terreno
eivado de incoerências e conflitos”, de “desordem” e “desentendimentos” entre
as “alçadas em relação à interpretação das leis”(4). Nas regiões
“periféricas”, distantes do litoral e das cidades desenvolvidas, as formalidades dos códigos confrontavam-se com
práticas e costumes de povoações tradicionais, analfabetas, para as quais as
leis escritas eram um mistério insondável(5). Os juízes e
“advogados” eram em grande parte leigos, pouco preocupados em conhecer as leis
e aplicá-las em decisões e julgamentos. Prevalecia a rotina dos costumes,
principalmente se respaldados pelos interesses do grupo de pertencimento(6).
Não apenas o
emaranhado e as incongruências das leis levavam os juízes e advogados a erros
de interpretação, a julgamentos e sentenças descabidas aos casos. De ordinário,
era a propensão a julgar e condenar em conformidade com “ilações jurídicas
subjetivas”(7). Por outro lado, o desconhecimento e a indiferença
mesma, pelos códigos, que, produzidos na Corte pelos jurisconsultos togados,
eram considerados ineficazes, inaplicáveis em localidades pobres, distantes da dinâmica social e econômica que caracterizava
algumas cidades da região Sul do Brasil.
Ao estabelecer o
princípio das leis escritas e válidas para todo o território nacional, o Estado
não contava com um corpo de funcionários nem capazes, nem dispostos a
confrontar a lei com as violências praticadas pelos proprietários de terras.
Eram ávidos por amealhar as terras mais produtivas localizadas nas beiradas dos
rios para criação de gado vacum e cavalar, atividade que constituía a riqueza e
fonte de renda da região. O interesse em expandir e arrecadar impostos não
coadunava com as formas de produção dos posseiros tradicionais. Aos agentes
públicos, parecia mais fácil aliarse aos poderes locais, deixando negros
livres, índios e pobres entregues à lei dos mais fortes.
Os procedimentos
legais dos representantes da Justiça, observáveis nos processos analisados, são
aleatórios e aplicados de acordo com interesses momentâneos dos
administradores: conheciam muito mal os códigos escritos e muito bem as
“práticas costumeiras” relativas ao lugar. A lei geral, escrita e codificada,
era confrontada pelo voluntarismo dos agentes sociais e a cultura “iletrada”
das populações, uma vez que as dos moradores eram comunicadas via oral, por
códigos tradicionais de ações individuais ou coletivas(8).
O recurso à lei geral
adotado pelos agentes governamentais era um abstrato incompreensível para a
maioria, quando não para os juízes encarregados de aplicar os códigos. As
camadas populares viam as leis como um obscuro expediente inventado por eles, a
fim de constrangê-los, de enganá-los, de roubar-lhes as propriedades e garantir
direitos aos seus protegidos. Enquanto a lei escrita formalizava a prática de
dominação e regulamentação estatal, os populares continuavam a recorrer às
experiências consagradas pela tradição oral(9). Em razão disso, são
relevantes os estudos analíticos sobre os conflitos gerados pelo confronto
entre as leis escritas e as práticas tradicionais, que envolveram os
representantes das leis e os habitantes locais. Nesse movimento, os sertanejos
eram incapazes de compreender os obscuros meandros das leis e dos regimentos;
ao se envolverem em ações e processos, procuravam proteção nos grupos de poder.
Apesar de analfabetos em sua maioria quase absoluta, aprendiam a dinâmica da
Justiça como experiência vivida fosse como indivíduo ou grupo.
A leitura dos
manuscritos demandou muito, muito tempo. Um mesmo processo passava por vários
escrivães e juízes ordinários, dificultando a leitura paleográfica. Na pesquisa
mesma, à medida que determinada grafia era decifrada, outro escrivão era
convocado a continuar a escrita dos autos, o que exigia do pesquisador o
aprendizado de outra grafia. Ao escrivão cabia escrever todos os trâmites do
processo, dos depoimentos, bem como a parte dos juízes, uma vez que muitos
deles ou não eram formados, ou eram alfabetizados apenas nas primeiras letras.
De ordinário, os
juízes eram escolhidos e nomeados entre os proprietários de terras moradores da
comarca. Muitos deles exerciam o cargo como símbolo de distinção e poder e
mantinham as atividades produtivas nas fazendas de gado e plantio. Num primeiro
momento, essas observações estão direta e indiretamente nas assinaturas dos
processos e nas informações dos relatórios dos presidentes de província e nos
anais do Ministério da Justiça. Juízes, promotores, delegados eram nomeados e
destituídos por ocasião das eleições. Nomeados pelos presidentes de províncias
ou pelo imperador, era frequente que, nessas oportunidades, se estabelecessem tensões
pela espera de ganhar ou perder o cargo ocupado até então.
A história do Segundo
Império foi atravessada por disputas de poder entre conservadores e liberais
que se revezavam na direção política do país. A polaridade entre os dois
partidos dominantes naquele período insuflava conflitos entre os habitantes da
região e gerava acirradas brigas entre grupos e famílias. Partidários de um ou
de outro lado, não era incomum que tais contendas resultassem em mortes,
notadamente nas províncias e comarcas distantes do centro político de poder(10).
Após as eleições, as desavenças entre juízes, promotores e personalidades
locais continuavam nos escritos publicados nos periódicos da capital(11).
Analisar processos
crime significa adentrar a história mediante uma micropartícula do espectro
social, cujos atores são indivíduos anônimos, chamados a prestar contas de suas
ações por um tribunal de justiça. Levados por circunstâncias, são transformados
em réus ou vítimas, ou testemunhas, oportunidade em que uma partícula de suas
existências ficava registrada. Uma vez produzidos por pelo Poder Judiciário, os
processos criminais guardam em si a representação de um poder(12),
de um procedimento ritualizado de poderes e do registro sintético de um
conjunto de relações, cuja materialização constitui uma abstração do real, um
fragmento da realidade social dependente de contextualização. A peça processual
registra o movimento temporal efetivo das ações dos juízes e escrivães, dos
depoimentos, das idas e vindas do oficial de justiça, considerando que todos
eles poderiam ser substituídos durante o processo. O interior do documento
encerra a narrativa encarnada dos envolvidos no crime e as circunstâncias
geradoras do proceso(13).
A leitura dos
depoimentos deixa perceber que eles são traduzidos pelo escrivão, ou seja, que
eles são sintetizados e trazem apenas informações novas ainda não constantes
nos depoimentos anteriores em razão da quantidade de depoentes. São depoimentos
bastante repetitivos, que pouco acrescentam ao fato objeto da denúncia crime e
ao deslindamento do crime em si; em contrapartida revelam as proximidades dos
homens e mulheres no cotidiano do trabalho na roça, no curral, nas andanças a
cavalo pelas paragens entre a vila e a moradia. Prestadores de serviço e
proprietários de terras e gado viviam próximos entre si e do código que vigia
no tempo do trabalho e do lazer. O valor histórico desses depoimentos é
inestimável, uma vez que permite o conhecimento das circunstâncias partilhadas
entre os sertanejos e o papel particular de alguns na história da região.
Os depoimentos de
anônimos daquele espaço rural sertanejo, entre os anos de 1870 e 1900, trazem elementos
do cotidiano deles, bem como das distâncias percorridas, dos rios que
atravessavam, da raça e cor dos cavalos montados, dos apetrechos de montaria.
Comumente, as informações cronológicas dos dias, meses e anos são bastante
imprecisas. Ricas, no entanto, são as informações que permitem delinear
diferentes níveis da estrutura social da região, da dinâmica da vida política,
das relações sociais e institucionais construídas naquela região periférica,
sem perder de vista os vestígios dos excluídos.
Em pesquisa nos periódicos foi possível comparar e
dimensionar as motivações e os antecedentes causadores das disputas; depois de
instaurados os processos, revelam-se as picuinhas políticas e o denuncismo
entre os homens de poder e seus dependentes. Com isso, foi possível recompor,
mesmo que em fragmentos, as ações dos juízes de direito e promotores das
comarcas e dos municípios, bem como o grau de envolvimento deles com os
proprietários de terras e comerciantes, cujas divergências e litígios eram
acompanhados e publicados pela imprensa oficial e partidária da província de
Goiás.
Nas disputas, a
vontade individual era confrontada por limites e controles interpostos pelos
representantes da lei. Os agentes da burocracia do Estado relacionavam-se entre
si e com os moradores das comarcas, construindo uma intrincada rede de
transmissão de interesses político-econômicos, de motivações subjetivas,
animada pelas práticas efetivas não raro alheias às formalizações legais.
Como os processos não
constituem séries, optou-se por analisá-los em separado, levando em
consideração as singularidades de cada um, recolocando-os no lócus de sua produção e sublinhando a
afirmação dos interesses coletivos e individuais entre os envolvidos.
Consideradas, de início, tão somente essas variáveis, entendeu-se que esse
procedimento não jogaria fora a criança com a água do banho, segundo metáfora
de Ginzburg no prefácio de O queijo e os
vermes(14). Essa opção de método releva a ausência de unidade
temática rígida, mas mantém o fio cronológico e espacial. O repetível nessa
documentação são os atores representantes dos grupos econômicos e
socioculturais da região: lavradores, roceiros, vaqueiros, criadores, juízes,
escrivães, delegados, oficiais de justiça(15).
Do conjunto dos
processos judiciais ressaltam-se as simetrias das motivações, das atitudes e
dos interesses dos grupos: agentes jurídicos e habitantes das localidades
referidas nos autos. Segundo Ginzburg, “[...] selecionar como objeto de
conhecimento apenas o que é repetível e, por isso, passível de serialização,
significa pagar um preço, em termos cognoscitivos, muito alto”. Se a
“documentação é falha” sob o ponto de vista cronológico e temático, “âmbitos
como a história das ideias e a história política... escapam por definição” da
serialização, que “anula as particularidades da documentação existente em
benefício do que é homogêneo e comparável”(16). A raridade e
exiguidade desses documentos exigem do inquisidor um procedimento
“profundamente desconfiado”. Mas o inquisidor é distinto do historiador, que
não busca a verdade, mas indícios e detalhes capazes de lançar luz sobre a
existência de segmento social, cujas práticas estão registradas em documentos
oficiais.
O movimento dos
agentes sertanejos caracteriza-se por uma dinâmica perene de “conflitos” e
“contradições”, “[...] acompanhados [no entanto] da contínua formação de novos
níveis de equilíbrio, instavelmente sujeitos a novas rupturas(17).
Regidos por interesses semelhantes, esses grupos compartilham o espaço vital do
sertão em luta renhida por terra, gado e água. Em outras palavras, Carvalho
Franco refere-se à “relativa indiferenciação da estrutura social e [à] fraca
discriminação das linhas de poder, aliadas ao domínio uniforme da cultura e à
comunhão em um sistema simples de valores claramente definidos”(18).
São raros os
registros históricos da presença de roceiros, vaqueiros e agregados na região
Norte de Goiás, o sertão do século XIX. Nas fontes documentais dos Oitocentos,
a história brota ao rés do chão nos depoimentos registrados nos processos em
estudo(19). Esses grupos sociais, aliás, perpassam os documentos
oficiais, cujos testemunhos orais subsistem escritos e deformados(20).
As mesmas considerações de Thompson sobre a cultura popular na Inglaterra do
século XVIII –onde então encontrar os iletrados se a lei “[...] não penetra nos
lares rurais, não aparecem nas preces das viúvas, não decora as paredes com
ícones, nem dá forma à perspectiva de cada um”– fazem coro à situação das
sociedades rurais do Brasil no século XIX(21).
O promotor Domingos
Baptista d’Araujo (1843-?) conservou-se no cargo por duas décadas. A vida
funcional desse promotor [doravante referido como promotor Baptista] começou
graças aos atos oficiais e decretos dos governos da província de Goiás, que ora
o nomeavam, ora o exoneravam dos cargos que ocupou de 1877 a 1900. Os jornais
da época dão conta de que foi vítima de espancamento em 1887. Há também dois
processos, um acusando-o de faltar às responsabilidades do cargo (18891894),
outro como vítima de um suposto segundo espancamento, em 1891(22).
O promotor Baptista,
casado, era filho legítimo do capitão Caetano Baptista de Araujo e de Dona Umbelina
Antonia Cardozo, conforme consta no Processo
de Espancamento Promotor Domingos Baptista de Araujo, 1891-1892(23).
Em 1873, aos trinta anos de idade, ingressou no serviço público como tabelião
em Arraias, onde nasceu. Foi designado promotor pela primeira vez em 1877, na
comarca de Boa Vista, para onde se mudou(24); em seguida foi
transferido para Palma(25).
Em 1879, o promotor
Baptista contribuiu com a Comissão de Emancipação de Porto Imperial,
subsidiária da Sociedade Emancipadora, doando 30$000 réis, quantia equivalente
ao valor de um cavalo(26). Desde 1871, após nova reforma dos códigos
Penal e Processual e a promulgação da Lei do Ventre Livre, os promotores de
justiça foram incumbidos de cuidar da situação jurídica dos filhos de escravos
nascidos livres para que fossem registrados como tal. Como representante da
promotoria nas comarcas, coube também ao promotor Baptista essa nova tarefa.
No início de 1881,
Joaquim de Almeida Leite Moraes chegou à província de Goiás com a missão de
organizar e preparar a primeira eleição direta dos deputados representantes da
província junto à Corte. A novidade causou alvoroço nas comarcas. A chegada de
um presidente, designado pelo imperador, significava mudanças na direção
política e consequentes destituições e nomeações para cargos administrativos. O
novo presidente tomou conhecimento das representações feitas por moradores da
comarca de Palma. Diziam que em vez de denunciar e mandar prender delinquentes,
o promotor Baptista agia motivado por interesses
particulares, razão pela qual requeriam providências do governo.
O caso referia-se ao
inventário do espanhol Domingos Antonio de Vasconcelos, que, morto em Minas
Gerais, deixara como herdeiros os pais, residentes na Galisa, e dois filhos,
residentes em Palma. O interesse nesse inventário ocasionou brigas entre as
partes, e os representantes da lei foram acusados de usurpação de bens. Nos jornais há longos e intrincados relatos
acusando o promotor Baptista de falsificar o testamento a fim de roubar os bens destinados aos genitores
e aos órfãos do espanhol.
Fatos como esses
levaram Leite Moraes a exonerar o promotor Baptista(27), o que, no
entanto, não pôs termo às desavenças: “[...] a luta [intrigas] tem continuado
como consta das frequentes representações das autoridades contra o promotor
[Baptista] e seus amigos, deste contra as autoridades”(28).
Em abril de 1882,
Baptista foi reconduzido ao cargo de promotor, dessa vez enviado para
Cavalcante(29). Nesse ano, deu forma pública à carta de “liberdade
plena e irrevogável” à escrava Sabina. Registrada em cartório, esse tipo de
alforria mantinha o cativo “coartado”, isto é, ele só poderia “libertar-se após
atender as exigências previamente estipuladas” pelo proprietário(30).
De forma que Sabina deveria servi-lo enquanto ele vivesse(31).
Particularmente nas
últimas décadas do século XIX, era prática costumeira dos proprietários de
escravos mandar publicar em jornais as alforrias concedidas, justificando-as
como gesto de humanidade, se bem que, na verdade, eram motivadas por falta de
recursos para mantê-los. Na região Norte de Goiás, os proprietários de poucos
escravos alforriavam-nos sim, no entanto continuavam dependentes de seus
senhores de quem constituíam mão de obra sem remuneração. Se verdadeira a nota
publicada e a vanglória pela alforria concedida à escrava, embora sob condição, Sabina tornou-se livre de
fato com a Abolição, em 1888, vez que o promotor Baptista ainda vivia em 1920.
Em 1887, uma nota
publicada no Correio Oficial de Goyaz(32)
informava que o promotor Baptista havia sido barbaramente espancado na comarca de Porto Imperial. Registrado em
relatório, o fato chegou ao conhecimento do presidente da província, que fez
constar a intenção de enviar à comarca força
policial a fim de apoiar as autoridades nos procedimentos de investigação e
“diligências cabíveis”(33), o que de fato não se efetivou. Naquele
período, as forças policiais, notadamente as do interior, eram minguadas e
desproporcionais à extensão do território. Os representantes da Justiça, por
sua vez, não se dispunham a deixar a capital da província e a enveredar por
caminhos difíceis(34), a fim de solucionar conflitos que, bem ou
mal, resolviam-se entre os homens e à margem das leis(35).
Antes mesmo do
registro do espancamento, bem como de o fato chegar ao conhecimento do
presidente e das denúncias nos jornais, era do conhecimento de muitos os
desmandos praticados pelo promotor Baptista, acusado de “fabricar processos”(36),
de desaparecer com inventários e testamentos nos cartórios da região, além de
insinuações de crimes de morte.
O Publicador Goyano levantou suspeitas sobre a veracidade do dito
espancamento e suposições de que se tratava de invencionice do promotor
Baptista com o intuito de justificar a contínua perseguição que fazia aos
desafetos e inimigos declarados. Mesmo investido de autoridade, defensor e
promotor da lei e da justiça, a nota endereçada ao respeitável público não o
poupou de adjetivos pouco lisonjeiros:
Na
noite de 18 para 19 de julho findo, foi agredido e bem espancado por três
indivíduos (segundo dizem) o Sr. Domingos Baptista de Araújo, promotor público
desta comarca, o que tendo consciência de onde lhe podia vir esse presente,
quis desprezar circunstâncias graves, para com toda leviandade dar como autores
dessa obra os abaixo-assinados, os quais não tendo tomado parte e nem ao menos
tiveram conhecimento do fato se não depois de estar ele apanhado; vem do alto
da imprensa protestar contra a mais desprezível calúnia, que contra os mesmos
dirigiu o Sr. Baptista, já propalando nesta cidade, já escrevendo para fora. É
ser muito mau e caprichoso o homem que desprezando causa plausível, quer
aproveitar-se de banalidades para caluniar a dois pais de família. Portanto,
pedimos ao respeitável público para suspender qualquer juízo desfavorável que
tenha feito a nosso respeito, até que a verdade apareça(37).
Os autores da
publicação visavam esclarecer ao público e defenderem-se das acusações que o
promotor Baptista espalhava pela comarca e fora dela, de boca em boca e pela
imprensa, acusando-os de responsáveis pelo dito espancamento. Lembravam aos
leitores que o promotor arrumava confusões e desafetos por onde passava: “Mal
vai a comarca de Porto Imperial, tendo por órgão da justiça um homem leviano,
caluniador e rancoroso, comprovando o que foi nas comarcas da Palma, Boa Vista,
Cavalcante e Posse”(38). E mais, agia por “manha”, fazendo-se de
“homem miserável”, posando de coitado sem recursos, não cuidando ele mesmo de
esclarecer as motivações dos agressores.
Em 1889, outra
publicação tratando ainda da agressão contra o promotor Baptista reacende as
divergências entre os contendores. Dessa vez era Donato Pereira de Abreu,
contrariado com os boatos espalhados pelo promotor Baptista, que insistia em
acusar seu amigo, tenente-coronel Salvador Francisco de Azevedo [doravante
referido como tenente-coronel Salvador], de ser o mandante da agressão.
Desafiou o infame caluniador a tirar a máscara e desmentir suas declarações. Para dar peso e força às declarações,
acrescentou novos argumentos e citou os nomes dos convivas de ambas as partes,
afirmando que todos eles sabiam e conheciam os “autores” do atentado contra
Baptista. Em conversas com os conhecidos
de ambas as partes, Donato defendera por diversas vezes o tenente-coronel
Salvador, reafirmando que ele era inocente daquelas acusações premeditadas e
injustas.
Tendo
em dias do mês de junho de 1887 o sr. tenente Domingos Baptista de Araújo
sofrido barbaramente um espancamento, queria alguns com toda a presunção que
fosse o sr. tenente-coronel Salvador Francisco de Azevedo, o autor de
semelhante presente, eu que sabia da injusta aplicação caluniosa, procurava
sempre defender o inocente, porém o sr. tenente Domingos mostravase
malsatisfeito comigo porque sempre [que] oferecia ocasião, defendia esse
inocente que a culpa presunçosa fazia recair(39).
A intenção de Donato
era dar satisfação pública à família do tenente-coronel Salvador, garantindo e
firmando por escrito a idoneidade e a sinceridade de seus atos. Aproveitando-se
da ausência de Donato(40), o promotor Baptista pôs em risco os laços
de lealdade que o ligavam à família do caluniado, o tenente-coronel Salvador.
Tais manifestações públicas visavam, enfim, realimentar e garantir o
reconhecimento coletivo das obrigações e dos laços privado-familiares(41).
[...]
tendo quem garantisse ao sr. Tenente-coronel Salvador e a Exma. D. Mariana, que
eu perante o sr. Baptista declarava ser o sr. Salvador o autor de tão cruel
espancamento, aproveito o órgão da imprensa para protestar e chamar esse infame
caluniador para tirar a máscara e vir-me desmentir o que acabo de expender,
[...] Podia hoje declarar o autor do bárbaro teatro que se representou no dia
18 de junho do ano acima referido como não é desconhecido em Porto Imperial,
por isso julgo desnecessário, e quem ignorar, pergunte o cheira-mel que ele
dirá quem são os seus autores, portanto a honra do tenente-coronel Salvador
está salva, e eu espero que esse infame, não me venha responder debaixo da capa
do anonimato. Julgo ter dado ao sr. tenente-coronel Salvador e seus dignos
parentes uma satisfação, e provado a minha inocência(42).
A nota pública
explicita os “estranhamentos” intergrupos, bem como reafirma as regras do
convívio social pautadas pela idoneidade, veracidade, honra e palavra
empenhada. Atos declarativos como esses, prescritivos de condutas de ação
pública e privada, buscam legitimidade social entre pares devidamente
autorizados e reconhecidos entre si. Os envolvidos direta e indiretamente no
conflito são homens cujas identidades são reconhecidas e garantidas
socialmente. São autoridades representantes do Estado, da família,
proprietários e comerciantes, qualidades respaldadas pela situação econômica
que os elevam à condição de honrados cidadãos e páter-famílias(43).
Escrever e mandar
publicar denúncias em jornais da capital, isto é, “para fora” das vilas onde as
desavenças ocorriam, quebrava a “harmonia doméstica” mantida pelo grupo
dominante. A exposição pública das diatribes intergrupos expunha as rachaduras
internas, que, na cultura rural tradicional, deveriam permanecer assunto local
e privado. Denunciar desmandos praticados pelos senhores da localidade punha em
risco o próprio grupo de pertencimento e os adversários ocasionais. Indivíduos
encrenqueiros eram colados à margem do grupo e tidos como forasteiros, a quem
restava ou ir embora da vila ou colocar-se sob a ascendência do páter-famílias
da localidade(44).
Naquele mesmo ano de
1889, o tenente-coronel Salvador levou o promotor Baptista às barras do
tribunal, denunciando-o ao juiz municipal de faltar com os “deveres a fim de
ser ele [...] responsabilizado”. No auto de denúncia consta que Mércias
Rodrigues Lourenço denunciara a ele “[...] as violências praticadas contra ela”
por vários homens, e que o promotor Baptista não dera prosseguimento à queixa a
qual [queixa] se acha até esta data entregue ao soberano esquecimento da
justiça”45.
As circunstâncias e
os detalhes sobre as violências sofridas pela pobre mulher não foram detalhadas
no processo. O promotor Baptista justificou a tardança em dar prosseguimento à
queixa de Mércias por falta do flagrante delito e do auto do corpo de delito.
No dizer dele, nas comarcas e termos adjacentes faltava autoridade policial
para fazer a verificação circunstanciada do crime. E para comprovar a acefalia
policial, solicita do delegado substituto uma declaração anexada ao processo:
“[...] todos os lugares de suplentes de delegado e de subdelegado e seus
suplentes […] [têm-se] conservado vagos, e que o mesmo atestante tem pedido
demissão do cargo, que com sacrifício tem exercido”(46). Mas havia
outro motivo, “[...] o único delegado de polícia na localidade era um dos agressores da pobre
mulher[...]”.
Em outro processo em
que Baptista atuou como promotor, justificou a ausência do corpo de delito em
razão da distância entre o foro e o local do crime, ocorrido em lugar ermo, oportunidade em que a polícia da
comarca encontrava-se “acéfala”(47). O promotor da comarca da Palma
relata a ocorrência de vários crimes na região e denuncia que “[...] o Dr. Juiz
de direito da comarca [...] tem posto termo a ação da justiça, anulando todos
os processos crimes –de ferimentos e mortes– que são afetos a sua decisão,
desde que deles não conste o auto de corpo de delito”. Uma das dificuldades era
encontrar “quem se [prestasse] a exercer o cargo de oficial de justiça para
fazer as intimações”(48).
Em 1886, uma denúncia
publicada no jornal denunciava o juiz da comarca de Palma, que despronunciou e
mandou soltar da cadeia o mandante e o mandatário de um bárbaro assassinato. O
autor considerou a atitude do juiz como a de quem fazia delegados e polícia
“[...] não mais se [envolverem] em indagações policiais para não serem vítimas
dos criminosos presos por eles e depois postos em liberdade” pelo juiz. Além
disso, “[...] em um sertão vasto, onde os crimes se dão quase sempre em lugares
despovoados e ermos, é difícil se não impossível conseguir um corpo de delito
[...]” . Se o corpo de delito era peça fundamental para o processo de acusação,
conforme constava no Código Penal e Processual, o juiz deveria avaliar as
condições objetivas do lugar. Deixar de pronunciar e prender por falta do corpo
de delito significava dar “amparo dos criminosos contra a ação da justiça”(49).
O promotor Baptista
justificou ainda ao juiz(59) que a denúncia do tenente-coronel
Salvador era movida pela “inimizade” que ele nutria contra si desde quando
haviam disputado uma vaga ao cargo de juiz municipal. Desse conflito de
interesses, o denunciante tenente-coronel Salvador começara “a empregar todos
os esforços para o desprestigiar perante o juiz de direito da comarca”. Disse
ainda que a prova do “entranhável ódio” daquele contra si, que tinha “por
hábito” escrever calúnias contra ele nos jornais, particularmente em O Publicador.
Por fim, para o
promotor, toda a motivação do processo de denúncia era “ódio... não causa!”. O
juiz não se convenceu do argumento apresentado e julgou que as ditas calúnias
poderiam ter sido escritas por um “anônimo”, uma vez que o promotor Baptista
não apresentara provas suficientes contra o denunciante51. A
denúncia foi então acatada e, em julho de 1889, o juiz mandou intimar as
testemunhas oferecidas pelo denunciante, tenente-coronel Salvador.
O processo parou
nessa mesma data e voltou a tramitar em 1892, quando o promotor Baptista foi
nomeado curador geral dos órfãos(52). Nesse ano, Joaquim Ayres da
Silva foi nomeado juiz municipal interino e expediu nova convocação das
testemunhas; intimou o promotor Baptista e o denunciante a comparecerem ao
tribunal a fim de acompanharem os depoimentos. Das seis testemunhas arroladas
na inicial do processo, duas haviam falecido. O professor Joaquim da Rocha
Maya, testemunha de acusação, não compareceu para depor sob a alegação de que
“na qualidade de professor público obedecia expressa ordem do [seu] superior
[...]. Barnabé Benedito Borges alegou que sofria “de febre [há] meses”. Também
não compareceram o promotor Baptista nem o denunciante, tenente-coronel
Salvador(53).
Em dezembro de 1892,
o tenente-coronel Salvador mandou publicar outra denúncia, desta vez em O Estado de Goyaz. Na carta enviada ao
redator, afirma que o juiz interino do processo de acusação contra o promotor,
Joaquim Ayres da Silva, era muito amigo do promotor Baptista, de quem era um
“faz-tudo”, bem como um “ignorante das leis e do direito”. O promotor Baptista,
por sua vez, sentindo “o vento lhe tanger a popa”, procurava assegurar-se de suas
alianças, fazendo-se de indispensável àquele juiz. O motivo de sua aliança com
o juiz fora a nomeação, em 1891, do autor do processo de acusação ao cargo de
promotor de justiça para exercício na comarca de Natividade. Essa nomeação,
dizia ele, desagradara alguns membros do grupo, temerosos de que ele (tenente-coronel Salvador), como promotor,
mesmo que em outra comarca, fizesse “reviver o que já estava esquecido”–clara
referência ao assassinato do advogado Leocádio e de Miguel João Linch(54)−.
O juiz municipal de
então, Joaquim Ayres da Silva, era suspeito de, em 1876, ter assassinado o
advogado Leocádio Manoel de Lima, na vila de Porto Imperial, sobre cuja morte o
jornal oficial de Goiás publicou ofícios do presidente da província, nos quais
solicitava providências e informações sobre o andamento do inquérito policial.
Passados alguns meses, as solicitações rarearam a ponto de não existirem mais
referências sobre o crime: caiu no esquecimento oficial, embora tenha
permanecido na memória dos moradores. A última menção ao tal assassinato foi
feita em uma nota, em que o delegado responsável pela investigação informava
ter “colhido indícios” contra Joaquim Ayres da Silva e sua mulher, Anna Ayres
da Silva, “inimigos do assassinado”. O inquérito policial foi remetido ao
promotor Baptista no ano de 1876(55).
Além de advogado, Manoel Leocádio de Lima era
examinador de provas de conclusão do ensino primário junto com Miguel João
Linch –“um moço de fora”–, que, em razão de ter protegido um “negro” –que lhe
pertencia, segundo Joaquim Ayres da Silva–, foi perseguido “até o ponto de
fugir e ser assassinado”. Em 1884, o declarante Joaquim foi chamado ao Tribunal
da Relação de Goiás a fim de justificar perante o desembargador a denúncia de
um “escravo” [Faustino] que o acusava de tê-lo reduzido da condição de homem
livre à escravidão.
Ninguém
desconhece que em nossa província, principalmente no Norte, existem mandões de
aldeia, que ditam a lei ao som do bacamarte. Todo mundo sabe que Joaquim Ayres
da Silva é um potentado no Porto Imperial, e que não há ali um só indivíduo que
se anime a ir de encontro à sua vontade, e que, assim, um pobre diabo que lhe
caia nas garras como escravo, embora possa provar a injustiça do seu
constrangimento, não encontra apoio, nem em autoridades nem em particulares,
contra o ditador daquele lugar(56).
Em 1888, Joaquim
Ayres foi eleito deputado para a Assembleia Legislativa provincial pelo Partido
Liberal(57). Em carta de agradecimento aos eleitores explicou que
sempre reconhecera o direito à liberdade dos escravizados, embora tenha
procurado provar durante quatro anos que o dito escravo Faustino lhe pertencia.
Segundo o justificante, a disputa fora uma necessidade,
[...]
de zelar da minha honra e reputação, que eu supunha feridas por esse processo
que deu lugar a que se duvidasse de minha seriedade e do meu caráter como se
fosse capaz de reduzir pessoa livre à escravidão, não me permitiu abandonar a
questão aventada por Faustino, máxime quando me eram dirigidas aleivosias que
muito me incomodaram(58).
Sobre o
tenente-coronel Salvador sabe-se que era comerciante e criador de gado. Em
diversas ocasiões foi nomeado para o “encargo” de promotor em Natividade e
Porto Imperial/Nacional(59). O nome de Domingos consta em censo
realizado pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comercio(60)
como proprietário da fazenda Gameleira, no município de Arraias, lugar onde
nasceu em 1843.
Os cargos do
Judiciário eram ocupados pelos titulados da Guarda Nacional, proprietários,
comerciantes e eleitores, poucos deles letrados. Os bacharéis em Direito,
nomeados pelo imperador, não permaneciam nas localidades destinadas a eles. Uma
rápida leitura de O Correio Oficial
da província é suficiente para averiguar sobre as incessantes nomeações,
remoções, pedidos de licença “para tratar da saúde” e as intermináveis prorrogações
concedidas aos juízes nomeados-quase nunca negadas pelo Ministério da Justiça.
Sobre essa situação, Leite Moraes escreveu ser “raríssimo” o juiz permanecer
numa comarca distante à de origem: “[...] gasta-se nesta província [de Goiás],
inutilmente, muito dinheiro com a administração da justiça [...]”(61).
Com gastos ou não, o
fato é que a justiça faltava particularmente no Norte da província de Goiás,
“[...] que está sempre em constante agitação; não há um só termo que não
ofereça uma lista oficial mais ou menos grave, ao passo que o Sul conserva-se
inalteravelmente em sossego”. Uma das causas da “intranquilidade” era imputada
à situação funcional dos membros do Judiciário, cujos juízes eram interinos em
todos os termos e comarcas. “Não temos, ao Norte, um só juiz municipal formado,
não existe um só advogado devidamente habilitado, a promotoria em todas as
comarcas está exercida por cidadãos sem a capacidade profissional [...]”(62).
Leite Moraes
responsabilizava os juízes municipais, ordinários e suplentes, pelas
“agitações” e “conflitos intermináveis”, “plantados” por eles mesmos entre os
habitantes das localidades de atuação:
Esta
luta desagradável [...] entre promotor, o juiz de direito interino e o juiz
municipal da comarca da Palma. Este denunciava o promotor ao juiz de direito, e
o promotor por sua vez denunciava o juiz municipal ao juiz de direito, e este à
Relação, representando ao mesmo tempo ao governo, e acusando-se reciprocamente
[...](63).
A interinidade na
magistratura e nos ofícios de justiça era o “grande mal”, responsável pela
anarquia da estrutura administrativa das províncias “colocadas a grande
distância da capital”(64). Um país dividido em “centro” e
“periferia” mantinha a partição justificadora das disparidades econômicas. “O
litoral servia ao progresso e à civilização, e o sertão representava a
barbárie, lugar de dispersão populacional, onde a lei não penetrava”(65).
Para além dessas divisões, o Judiciário demorou a conquistar autonomia frente
ao Legislativo e à “[...] prática recorrente do Executivo de questionar as
decisões do Judiciário, chegando mesmo a forçar sua modificação punindo
magistrados”, inviabilizava a constituição do Judiciário enquanto poder
autônomo”(66).
A administração da
justiça nas regiões distantes dos centros “desenvolvidos” ficou entregue aos
subalternizados, que, apesar de investidos do cargo, submetiam-se aos poderes
locais. Os relacionamentos pessoais constituíam laços mais fortes se comparados
ao poder impessoal, imaterial do Estado. Por outro lado, ater-se às
prerrogativas do cargo e fazer valer a perspectiva pública poderia significar
trair o grupo e a família. Ocupar um cargo na administração não significava
para os homens da localidade o esquecimento das rivalidades preexistentes entre
os clãs longamente construídas e alimentados por laços de solidariedade. Não
lhes eram estranhas as tensões que permeavam a comunidade em que haviam
nascido.
Os juízes,
promotores, delegados e oficiais de justiça, a polícia conheciam os aderentes,
os agregados e os afiliados que, em último caso, trabalhavam nas casas deles,
nas fazendas, roças, currais, e serviços ilícitos. Eram do conhecimento de
todos os valores morais reguladores daquelas relações de interdependência. Essa
proximidade espacial contaminava e impedia o estabelecimento de uma justiça
pautada pela neutralidade
Fuentes
Processo de Espancamento Promotor Domingos Baptista de
Araujo, 1891-1892,
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Processo Salvador versus Domingos
Baptista de Araujo, 1889-1894, http//www. esmat.gov.br#.
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Humanas, Departamento de História, 2007.
Notas
1 A jurisprudência brasileira era um “terreno eivado
de incoerências e conflitos”, “desordem” e ocasionando “desentendimentos” entre
as “alçadas em relação à interpretação das leis”. Spiller Pena, Eduardo. Pajens
da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871 (Campinas:
Unicamp, 2001), p. 36.
2 Hunold Lara, Silvia. “Legislação sobre escravos
africanos na América portuguesa”, em Gallego, José Andrés (coord.), Nuevas
aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica (Madrid: Fundación
Histórica Tavera-Digibis-Fundación Hernando de Larramendi, Colección Proyectos
Históricos Tavera, 2000), p.130, (CD-Rom).
3
Ibíd., p.130.
4
Spiller Pena, Eduardo, Op Cit., p.49.
5 Essa situação de há muito foi constatada por Prado,
Jr. Formação do Brasil contemporâneo (São Paulo, Brasiliense, 1942) e discutida
por: Mello e Souza, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século
XVIII (Rio de Janeiro: Graal, 1982), pp. 91 ss. Mais recentemente, a
historiadora retomou o tema da política administrativa: Mello e Souza, Laura
de. O sol e a sombra. Política e administração na América Portuguesa do século
XVIII (São Paulo: Companhia das Letras, 2009). No entanto, saber nos livros é
situação muito diversa se comparada à empiria dos documentos manuscritos sobre
os quais estamos debruçados há mais de dois anos.
6 Essa afirmativa é uma inversão do que afirma Bobbio,
Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofía do direito (São Paulo:
Ícone, 1995).
7
Spiller Pena, Eduardo, Op Cit., p. 54.
8 Andrade Arruda, Jose J. História Moderna e
Contemporânea (São Paulo: Ática, 1981), pp. 95 ss.
9 Barreiro, José Carlos. “Thompson e a historiografia
brasileira: revisões críticas e projeções”, em Revistado Programa de Estudos
Pós-graduados de História, vol. XII, São Paulo, Pontifícia Universidade
Católica, 1995, p. 65; Wolmer, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 3
ed. rev. e amp. (Rio de Janeiro: Forense, 2002), p. 54.
10 Mello e Souza, Laura de. O sol e a sombra..., p.
65.
11 Revel, Jacques (org.). Jogos de escalas. A
experiência da microanálise, trad. Dora Rocha (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998), p. 18.
12 Bourdieu, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria
da ação, trad. Mariza Corrêa (Campinas: Papirus, 1996), pp. 113 ss; Adorno,
Sergio. Os aprendizes do poder. O bacharelismo liberal na política brasileira
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988), p. 78.
13 Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro,
falso, fictício, trad. Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão (São Paulo:
Companhia das Letras, 2007), p. 75.
14 Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano
de um moleiro perseguido pela Inquisição, trad. Maria Betânia Amoroso (São
Paulo: Companhia das Letras, 2006), p. 25.
15 Levi, Giovanni. Herança imaterial: trajetória de um
exorcista no Piemonte no século XVII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000), p. 16.
16 Na sequência, reitera: “[...] que o conhecimento
histórico implique a construção de séries documentais, é óbvio. Menos óbvia é a
atitude que o historiador deve adotar em relação às anomalias que afloram na
documentação. [...] Todo documento, inclusive o mais anômalo, pode ser inserido
numa série. Não só isso: pode servir, se analisado adequadamente, a lançar luz
sobre uma série documental mais ampla”. Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros...,
pp. 261-262.
17 Ibíd. p. 45.
18 A autora conclui afirmando que, “[...] se uma
cultura pobre e um sistema social simples efetivamente tornam necessárias
relações de recíproca suplementação por parte de seus membros, também aumentam
a frequência das oportunidades de conflito e radicalizam as suas soluções”.
Franco, Maria Sylvia. Homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Instituto
de Estudos Brasileiros, USP), p. 29.
19 Levi, Giovanni, Op Cit., p. 25.
20 Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros..., p. 280.
21 Thompson, Edward P. Costumes em comum: estudos
sobre a cultura popular tradicional, trad. Rosária Eichenberg, 2a ed. (São
Paulo: Companhia das Letras, 1998), p. 19.
22 Neste último, Domingos acusa Henriqueta Pinheiro
Guimarães de estelionato, falsificação de cartas, pedido de empréstimo e, por
último, de tentativa de assassinato. Processo de Espancamento Promotor Domingos
Baptista de Araujo, 1891-1892, www.esmat.gov.br# (17 de junho de 2015).
23 Ibíd., p.46.
24 Correio Oficial de Goyaz, 16 de setembro de 1876,
(10), p. 3, www.bn.br# (16 de junho de 2016).
25 Ibíd, 13 de março de 1878, (18), p. 1 (16 de junho de
2016).
26 A Tribuna Livre, 15 de dezembro de 1879, p. 3, e 15
de dezembro de 1880, p. 4, www.bn.br# (26 de maio de 2015). Ferreira de Gilka
Salles, Vasconcelos. Economia e escravidão na Capitania de Goiás, (Goiânia:
Cegraf/Universidade Federal de Goiás, Coleção Documentos Goianos, núm. 24,
1992), p. 237.
27 Leite Moraes, Joaquim de Almeida. Relatório
dirigido à Assembleia Legislativa Provincial de Goyaz em 30 de novembro de
1881, p. 77, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/331/index.html# (13 de junho de
2015, Exonerado em 3 de maio de 1881, incurso no art. 129, § 5o, do Código
Criminal.
28 Ibíd., p. 92.
29 A comarca de menos de mil e quinhentos habitantes,
cujos habitantes pareciam “desertores de um hospital”. Situada geograficamente
entre muitas serras, cercada de muitos “rios virgens” e “mananciais de ouro”
havia nesta comarca muitos doentes de “bócio”, “amarelão”, “opilados”, “febres
paludosas”. Cavalcante “[...] fica como que dentro de um funil, cuja posição
lhe imprime um tal aspecto de tristeza, que se comunica aos semblantes de seus
moradores. [...]”. O Publicador Goyano, 15 de março de 1886, p. 2, www.bn.br#
(17 de julho de 2015). O julgado de Cavalcante, de onde se extraiu ouro nos
fins dos setecentos, “evoluiu naturalmente para o pastoreio” e os escravos das
minas e arredores ali se fixaram. Ferreira de Salles, Gilka Vasconcelos, Op
Cit., p. 241.
30 Hunold Lara, Silvia. Campos da violência: escravos
e senhores na Capitânia do Rio Janeiro, 1750-1808 (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988), p. 63; Chalhoub, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas
décadas da escravidão na corte (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), p. 35;
Viotti da Costa, Emília. Da senzala à colônia (São Paulo: Brasiliense, 1989),
p. 30; Eisenberg, Peter. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século
XIX”, em Revista Estudos Econômicos, vol. II, núm., 17. São Paulo, Universidade
de São Paulo, maio/agosto de 1987, pp. 175 ss.
31 Correio Oficial de Goyaz, 12 de julho de 1883, p.
3, www.bn.br# (16 de junho de 2016).
32 Ibíd., 6 de agosto de 1887, p. 3.
33 A força pública-os destacamentos enviados da
capital para o interior da província-em vez de ser “a garantidora da ordem, era
a primeira a provocar desordem”. Espírito Santo, Brigadeiro Felicíssimo do.
Relatório apresentado à Assembleia Provincial de Goiás em 20 de outubro de
1887, p. 45, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/331/index.html#. (18 de junho de
2015).
34 Ehlert Maia, João Marcelo. “Governadores de ruínas:
os relatos de viagens de Couto Magalhães e Leite Moraes”, em Revista Estudos
Históricos, núm. 40, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, julho/dezembro de
2007, pp. 3 ss; Rodrigues, Neuma Brilhante. Nos caminhos do Império: a
trajetória de Raimundo José da Cunha Mattos, (tese doutorado), Brasília:
Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de
História, 2007, p. 35.
35 Brasil-RMJ Relatório do Ministério da Justiça (Rio
de Janeiro: A Secretaria de Estado do Negócios do Império, 1880), p. 35.
36 Goyaz, 18 agosto de 1887, núm. 82, p. 3, www.bn.br#
(16 de março de 2017).
37 O Publicador Goyano, 10 de setembro de 1887, p. 4,
www.bn.br# (17 de julho de 2015). Assinam a nota Salvador e Manoel Gomes da
Silva. Órgão do Partido Liberal. Proprietários: Tocantins & Aranha; Redator
e responsável intelectual: Jose do Patrocínio Marques Tocantins; Tipografia ao
Largo do Chafariz, núm. 29; Typ. Perseverança, 1885-1889,
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=24725#
(16 de março de 2015).
38 O Publicador Goyano, 10 de setembro de 1887, p.4,
www.bn.br# (16 de março de 2015).
39 Ibíd, p. 4.
40 Espírito Santo, Brigadeiro Felicíssimo do.
Relatório apresentado à Assembleia Provincial de Goiás em 20 de outubro de
1887, p. 47, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/331/index.html# (21 de julho de
2015). Donato Pereira de Abreu era professor vitalício da escola de Porto
Imperial até 1888, quando pediu ao presidente da província sua remoção para a
comarca da Conceição.
41 Viana, Oliveira. Populações meridionais do Brasil,
núm. 27 (Brasília: Senado Federal, 2005), p. 103.
42 Goyaz, 18 de abril de 1889, p. 4, www.bn.br# (17 de
julho de 2015).
43 Bourdieu, Pierre. Razões práticas..., pp. 113 ss.
44 Viana, Oliveira. Populações meridionais..., p. 103.
45 Processo Salvador versus Domingos Baptista de
Araujo, 1889-1894, www.esmat.gov.br# (14 de junho de 2015).
46 Ibíd.
47 Guimarães. Melo, Rita C. “Vaqueiros e coronéis no
Vale do Alto Tocantins (1889-1893): relato de um crime anunciado”, em
Associação Nacional dos Professores Universitários de História: conhecimento
histórico e diálogo social XXVII (Natal, 2013), p. 18.
48 O Publicador Goyano, 7 de agosto de 1886, p. 2,
www.bn.br# (17 de julho de 2015).
49 Ibíd.
50 Processo Salvador versus...
51 Ibíd. No processo, o promotor Domingos refere-se a
dois artigos difamatórios que diz ter anexado ao processo, que, no entanto, não
foram encontrados nos jornais pesquisados.
52 Goyaz, 13 de fevereiro de 1891, p. 3, www.bn.br#
(17 de julho de 2015).
53 Processo Salvador versus...
54 O Estado de Goyaz, 15 e 18 de dezembro de 1892, p.
2, www.bn.br# (16 de fevereiro de 2015).
55 Correio Oficial de Goyaz, 7 de novembro de 1874, p.
3, www.bn.br# (16 de maio de 2016).
56 O Publicador Goyano, 9 de agosto de 1885, p. 2,
www.bn.br# (17 de julho de 2015).
57 Goyaz, 19 de outubro de 1888, p. 2, www.bn.br# (17
de julho de 2015).
58 Ibíd, 21 de outubro de 1888, p. 2.
59 Natividade, São Jose do Duro, Pontal, Descoberto do
Carmo e Conceição formam um conjunto de povoações remanescentes do período
aurífero, denominado de setentrião goiano. Acima destas povoações “[...] estava
o desconhecido pouso dos gentios Xavante, Acroá e outras tribos aguerridas,
região de perigo, fronteira natural entre o invasor e o nativo”. Ferreira de
Salles, Gilka Vasconcelos. Economia e escravidão na Capitania de Goiás (Goiânia:
Cegraf/Universidade Federal de Goiás, Coleção Documentos Goianos, núm. 24,
1992), p. 241.
60 Brasil-RMAIC. Relatório do ministro da Agricultura
Indústria e Comércio enviado ao Presidente da República (Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1926), p. 103.
61 Leite Moraes, Joaquim de Almeida. Relatório
dirigido à Assembleia Legislativa Provincial de Goyaz, em 30 de novembro de
1881, p. 57, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/331/index.html# (31 de janeiro de
2015).
62 Ibíd.
63 Ibíd.
64 Ibíd., p. 49.
65 O pensamento conservador não se restringia à
crítica às terras remotas: “[...] o grosso da população carecia de instrução,
de moral e de hábitos saudáveis de subordinação e de trabalho; por outro lado,
os ‘poderosos’ eram movidos unicamente por interesses particulares, reforçando
a desordem e o arbítrio”. Nunes Ferreira, Gabriela. “Visconde do Uruguai:
teoria e prática do estado brasileiro”, em Botelho, André e Moritz Schwarcz,
Lilian (org.), Enigma chamado Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2009),
pp. 21-22. Dolhnikoff, Miriam. “Elites regionais e a construção do estado
nacional”, em Jancsó, István (org). Brasil: formação do estado e da nação,
Coleção Estudos Históricos, núm. 50 (São Paulo: Hucitec/Unijuí/Fapesp, 2003, p.
89.
66 Sá Netto, Rodrigo. “O Império brasileiro e a
Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça (1821-1891)”, em Memória da
Administração pública brasileira (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, Cadernos
Mapas m. 2, 2011), pp. 10-11,
http://www.portalan.arquivonacional.gov.br/media/2011# (09 de julho de 2015).