Para além das fronteiras
nacionais: imagens do americanismo como modelo de vida no ocidente. O Brasil como estudo de caso (1945-1964)*
Resumo
Este artigo procura demonstrar como se deu a
globalização de um modelo cultural pautado no modelo estadunidense a partir do
pós-45, entendendo a construção do ocidente como resultado de uma disputa por
hegemonia dentro de um determinado contexto histórico. Nesse contexto, as
imagens ganharam destaque como veículo de contato entre os sujeitos e o mundo
que os cerca, ou seja, como um mecanismo de leitura do real. A pesquisa foi
feita a partir da análise de imagens disponíveis em revistas de grande
circulação no Brasil com pontuais comparações com revistas de circulação
hemisférica, tais como a Reader’s Digest. Dessa forma, foi possível traçar os
discursos imagéticos hegemônicos presentes na imprensa brasileira e disponíveis
para subjetivação do público leitor. Conclui-se como o uso das imagens
contribuiu para a construção de um modelo de vida e cotidiano hoje chamado de
ocidental a partir do americanismo, tomando, para isto, a realidade brasileira
como estudo de caso.
Palavras Chave: Américas, cultura Norte Americana, visualização.
Referencia para citar este
artículo: M. S. ARRAES, Marcos
Alexandre de (2017). “Para além das fronteiras nacionais: imagens do
americanismo como modelo de vida no ocidente. O Brasil como estudo
de caso (1945-1964)”. En Anuario de Historia
Regional y de las Fronteras. 22 (2). pp. 99-119.
Fecha
de recepción: 30/11/2016
Fecha
de aceptación: 06/04/2017
Marcos
Alexandre de M. S. Arraes: Doutor em História pela Universidade
Federal de Santa Catarina com período Sanduíche na University of California,
Irvine. Mestre em História
Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Graduação em
História pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Professor Adjunto A-1
da Universidade Federal do Tocantins, Brasil. Correo electrónico:
maarraes@gmail. com. Código ORCID: 0000-0002-8893-6561.
Beyond National Borders: Images of Americanism as a
Model of Life in the West. Brazil as a Case Study (1945-1964)
Abstract
This article tries to demonstrate how the globalization of a cultural
model based on the American model occurred after 1945, understanding the
construction of the West as a result of a dispute for hegemony within an
specific historical context. In this context, the images gained prominence as a
vehicle of contact between the subjects and the world around them, that is, as
a mechanism for reading the real. The research was made from the analysis of
images available in magazines of great circulation in Brazil with punctual
comparisons with magazines of hemispheric circulation, such as Reader’s Digest.
In this way, it was possible to trace the hegemonic imagery discourses present
in the Brazilian press and available for reader’s subjectivation. It is
concluded that the use of images contributed to the construction of a daily
life model based on the Americanism so called Western, taking, for this, the
Brazilian reality as a case study.
Keywords: Americas, North American Culture, Visualization.
Más allá de las fronteras nacionales:
imágenes del americanismo como un modelo de vida en occidente. El
Brasil como un estudio de caso (1945-1964)
Resumen
En el presente artículo se
muestra el desarrollo de la globalización desde un modelo cultural basado en el
modelo estadounidense pos-45, tomando la comprensión de la construcción de
Occidente como resultado de disputas por la hegemonía dentro de un contexto
histórico específico. En este contexto, las imágenes ganaron la prominencia
como un vehículo de enlace entre el sujeto y el mundo que les rodea, o sea,
como un mecanismo de lectura de la realidad. La investigación se realizó a
partir del análisis de las imágenes disponibles en grandes revistas de
circulación en Brasil y ocasionalmente en revistas de circulación hemisférica,
tales como el Reader’s Digest. Fue posible rastrear los discursos imagéticos
hegemónicos presentes en la prensa brasileña y disponible para la subjetividad
del público lector. De ello se desprende cómo el uso de imágenes contribuyó a
la construcción de un modelo de vida cotidiana que ahora se llama occidental,
teniendo, por esto, la realidad brasileña como un estudio de caso.
Palabras clave:
Américas, cultura norteamericana, visualización.
O presente artigo objetiva analisar o uso e
importância da visualidade como agente de consolidação do modelo de civilização
estadunidense enquanto paradigma para todo o mundo ocidental no pós-Segunda
Guerra. Em outras palavras, buscar-se-á entender a globalização do americanismo(1) na segunda
metade do século XX, tendo como ponto de partida a construção de uma comunidade imaginada(2) a que
hoje chamamos de mundo ocidental. Para tanto, utilizarei o Brasil como estudo
de caso, onde, como veremos, fezse necessário um amplo esforço de enquadramento
e apresentação do americanismo e seus
valores centrais a partir de uma série de práticas, às quais às imagens foram
produto central.
Antes de mais nada, penso ser necessário definir o que
estou entendendo como americanismo.
De forma simplista e direta, poder-se-ia defini-lo como um conjunto de práticas
culturais relativas aos Estados Unidos da América. Todavia, a simplicidade,
nesse caso, pende para uma perigosa generalização que nada explica.
Antonio Gramsci, ao que parece, foi o primeiro
pensador a se ater a esse conceito no texto Americanismo
e Fordismo, incluso em seu Cadernos
do Cárcere, de 1934. Para ele, o
termo qualificava um equivalente cultural necessário ao modelo fordista de
produção fabril.
Nesse sentido, o americanismo
denota um modelo de sociedade, o que implica dizer que ele enquadra não
apenas práticas culturais, como também um modelo de produção econômica e
reprodução social. Em outras palavras, uma cultura em sentido amplo, englobando
tudo aquilo que foi construído e dotado de sentido pelo homem em sua
experiência no tempo.
Para a ocasião deste
artigo, estou considerando como americanismo
o projeto civilizador estadunidense esboçado e sucessivamente reelaborado,
recortado, reinterpretado, desde a fundação da nação. Um projeto que, à medida
que foi sendo estabelecido na prática na conquista das fronteiras do Oeste das
treze colônias, passou a ganhar força e ampliar seu escopo de ação, fazendo
surgir o Destino Manifesto. As
repetidas lapidações que esse esquema recebeu, contudo, não deixaram de lado
alguns valores tidos como essenciais e universais, entre eles os ideais de
liberdade, democracia e individualidade.
Não estou, com isso,
pensando o americanismo enquanto um télos histórico que mira, através de
sucessivas progressões, um futuro promissor e positivo. Ao contrário, esse foi
um modelo de sociedade que aconteceu historicamente, sendo sucessivamente
recolocado e rearranjado dentro de suas historicidades. Foi a história, e
exclusivamente dentro dela, que, entre acasos, acertos diplomáticos e outras
condições de possibilidade, permitiu que tal projeto se tornasse hegemônico ao
longo do século XX e, assim, se universalizasse(3).
Tal tema é bastante
recorrente na historiografia latino-americana desde, ao menos, a década de 60
do século passado. Contudo, boa parte dessas obras faz uso das ideias de
dominação, chegando mesmo a comparar as relações dos Estados Unidos com os
outros países americanos como uma nova colonização, considerando a presença estadunidense
ao sul de suas fronteiras como uma imposição(4). Não desmerecendo
tais trabalhos, que tiveram e têm contribuído para o debate sobre a questão,
adoto aqui outra vertente analítica. Na esteira das renovações nas pesquisas
promovidas pela chamada virada cultural,
acredito que a cultura é um organismo vivo, dinâmico e circular, não cabendo,
portanto, o termo imposição. Semanticamente, imposição significa ação de obrigar a aceitar e, portanto, possui
um caráter limitador da agência de quem recebe a ação. Supor que o Brasil
sofreu um imposição cultural estadunidense, não só implica dizer que elementos
culturais podem ser determinados a alguém, esvaziando o princípio dialógico e
histórico da cultura, como também implica uma relação onde apenas um dos sujeitos
age, sendo uma relação passiva. Sendo assim, o presente artigo procura
contribuir na atualização do debate historiográfico a respeito do tema,
tratando as relações entre os Estados Unidos com o continente americano como
uma relação de força, muitas vezes desigual, mas que implicou em ações e
reações tanto de aceitação quanto de recusa e resistência. Isso implica dizer
que os países ao sul do Rio Bravo não apenas foram sujeitos passivos, vítimas
de uma Teoria da Dependência, mas agiram, tanto aceitando determinados aspectos
políticos, econômicos e culturais advindos de fora, quanto recusando e
defendendo suas posições em determinados momentos. Acredito ser importante essa
transformação para que possamos superar as explicações do determinismo
histórico, que imputa ao outro a responsabilidade pelo nosso destino; é urgente
que possamos reavaliar as relações de classe e força interna aos nossos países
e que entendamos que essas articulações se fazem não como uma imposição, mas
como diálogos ressoantes em esferas hegemônicas para que possamos dar voz e vez
para as possibilidades contra-hegemônicas. Nos limites deste texto, contudo,
irei apenas iniciar a primeira etapa do trabalho, deixando para um próximo
texto a discussão sobre as resistências ao modelo aqui discutido.
Retomando a análise,
um momento, em especial, merece destaque para o caso em estudo: a atuação do Office of the Coordinator of Inter American
Affairs (OCIAA) nos anos 40 no Brasil(5),
pois, concordando com Tota, foi a partir da atuação desse órgão que se
estruturou efetivamente “[...] o americanismo, entendido aqui como uma
ideologia programática, em que o sufixo –ismo tinha se transformado num
poderoso armamento intencional, com o claro objetivo de suplantar outros–
ismos, autóctones ou não”(6).
É nesse momento que
os brasileiros começam a familiarizar-se com o discurso americanista e o estilo de vida cotidiano proposto por ele: o American way of life. No bojo desse
discurso estavam presentes diversos elementos valorativos, tais como o ideal de
democracia, o progresso, o tradicionalismo, o trabalho, a liberdade –muitos
desses condensados na ideia de self made
man– que seriam bombardeados
através de diferentes instrumentos de produção discursiva. Cada uma dessas
ideias estava conectada e imbricada uma à outra, de forma a construir uma
ideologia bem acabada e pronta a ser exportada. No entanto, no caso do Brasil,
elas tiveram diferentes recepções e apropriações de acordo com o momento e a
realidade vividos pelo país.
É, portanto, partindo
dessa acepção que irei trabalhar o conceito de americanismo para adequá-lo ao momento em análise. Estou levando em
consideração o imaginário do que era o American
way of life no Brasil pós-1945. Ou melhor, o que os principais órgãos de
imprensa divulgavam como sendo o padrão de vida estadunidense com vistas, quase
sempre, a tornar esse modelo um paradigma a ser seguido pela sociedade
brasileira. Esses discursos, no entanto, não eram meras fabricações ilusórias
ou equivocadas, mas sim uma seleção de aspectos hegemônicos presentes naquela
cultura e que se queriam tornar universais.
Comecemos, então, por
uma imagem.
Imagem
1. Fotografia, tirada em
Williams, Arizona.
Fonte: acervo pessoal
Esta fotografia, tirada em Williams, Arizona, resume
os principais valores representados pelo americanismo.
Ao topo de uma das casas comerciais do centro da cidade há uma imensa
pictografia com a bandeira estadunidense em toda a sua extensão. Ao centro, a representação
da famosa fotografia tirada na batalha de Iwo
Jima na Segunda Grande Guerra e que, desde então, passou a significar o
esforço estadunidense na busca por paz, democracia e liberdade em todo o mundo.
Essa imagem traz soldados ao topo de um cume, lutando contra o vento e se
expondo a possíveis inimigos para ali fincar o símbolo máximo da nação, que,
naquele momento, representava todo o mundo
livre. No canto esquerdo, logo abaixo das estrelas da bandeira, a águia
estadunidense, representação máxima da liberdade naquele país(7). Ao
longo de toda a extensão, escudos e figuras de todas as forças armadas dos
Estados Unidos. Finalmente, à direita vê-se um homem idoso e um garoto olhando
como em um misto de contemplação e resignação a um cemitério cheio de lápides.
Lê-se ainda a mensagem: Freedom is not
Free.
Imagem
2. Detalhe da imagem
anterior
Fonte:
acervo pessoal
No primeiro plano,
uma placa sinaliza: Station 66 Gift Shop. Mais uma vez, o discurso é claro e direto: a
liberdade é um valor máximo e onipresente. Mas não é gratuita, há um preço a
ser pago, deve ser conquistada e preservada. É preciso atenção e força. As
armas garantem essa liberdade e poder. Apenas assim a democracia e os valores
ocidentais estariam garantidos. A ironia com a comercialização não foi em vão.
Na democracia liberal instituída naquele país, parte central do considerado
melhor projeto de civilização até então existente, tudo tinha um preço e precisava
ser conquistado, lutado, suado. Nada pode vir de graça ou por iniciativa do
Estado patriarcal. Numa sociedade assim estabelecida, afinal, que representante
melhor da democracia, liberdade e igualdade que o consumo (para os padrões
estadunidenses)?
‘A Coke is a Coke’, Andy Warhol once wrote, for example, ‘and no amount
of money can get you a better Coke than the one the bum on the corner is
drinking’ (Warhol, 1975:101). We are asked to understand, here, that American
democratic ideology is embeded in the machinery of mass consumption.
Alternatively, it is also the case that the capitalist model of mass
consumption is impossible to achieve without some forme of liberal democracy to
produce and protect the ‘freedom’ to buy the same thing as everyone else: needless
to say, Warhol’s aphorism also requires the structural presence of the bum on
the corner in order to celebrate the ‘classlessness’ of both the product and
the act of consumption. But the real democracy posited in Warhol’s pictures of
Coke bottles, and in the advertising images of which he drew, is one of objects
rather than social relations(8).
O consumo torna-se
essencial para a cultura e sociedade estadunidense ao final da guerra. Naquele
momento, não se tratava de uma urgência meramente econômica. Eram as bases da
existência mesmo da nação que estavam em xeque, era o próprio americanismo que precisava ser
defendido. E isso não vinha de graça. Diante das responsabilidades de potência
vitoriosa e líder do bloco ocidental, era necessário fazer frente ao modelo
soviético que se impunha do lado oriental. Cabia, portanto, mostrar as razões
para o seu excepcionalismo, conforme afirmou Tocqueville.
Para muitos, o ato de
consumir continha em si os valores basilares que precisavam ser defendidos e
alastrados pelo mundo livre ocidental(9). Não estou assumindo que
essa prática, por si só, define de forma inequívoca a sociedade e cultura
estadunidenses(10). O objetivo é analisar os discursos que buscaram
enunciar o ato de consumir como um valor universal a ser defendido a qualquer
custo, pois acreditava-se estar relacionado às liberdades individuais e à
democracia social. Importa atentar para essa questão, uma vez que foram esses
mesmos discursos incorporados pela mídia hegemônica no Brasil e enunciados como
o paradigma máximo de determinados setores sociais do país, especialmente nos
anos 50 e 60(11).
Com o raiar da Guerra
Fria, o esforço dos Estados Unidos seria direcionado para ativar toda uma
estrutura enunciativa para a construção da ideia de mundo livre ocidental, no
sentido de demonstrar o que esse modo de vida tinha de diferente. Era preciso
convencer os europeus e também as Américas de que there is no way like the American way. Mais que isso, convencer de
que não havia diferenças entre o American
way e o Western way como um todo,
que havia uma irmandade de interesses e objetivos, visões e práticas cotidianas
comuns que fundavam essa comunidade imaginada.
[...] the American state acknowledged the special place advertising
ocupied in the conduct of foreign affairs. Whereas other countries employed
propaganda in pursuit of their interests, by means of heavy-handed government
sloganeering, America emplyed publicity in pursuit of its global mission, using
essentially private means, the skillfully nuanced counsel of its
mass-communication industries. And whereas other countries propagated ideology,
the American nation professed ideals(12).
Foi nesse sentido que
um grande esforço propagandístico foi realizado para construir a ideia de
comunidade atlântica a partir do Plano Marshall e da OTAN(13). Ao
mesmo tempo, diversas outras políticas eram desenvolvidas por órgãos do governo
dos Estados Unidos para divulgar os valores essenciais da nação e, logo, da
comunidade ocidental que buscavam forjar.
Procurando mesclar os
esforços do governo no sentido de divulgar o American way of life como grande paradigma mundial com a força dos
produtos enquanto transformadores de hábitos que os artífices da diplomacia
estadunidense conseguiram um acordo cultural entre o seu país e a URSS. Entre
as ações deste acordo estava a realização de feiras de exibição de produções
artísticas, moda, hábitos cotidianos e, em especial, produtos industrializados
em ambos os países, como serve de exemplo a realização da Feira Internacional
de Moscou, ou American National
Exhibition, como ficou conhecido nos Estados Unidos o evento ocorrido no
final da década de 1950.
No escopo dessas
ações e com objetivos similares, ainda na mesma década, a CIA, com suporte do Pentágono e outras agências estatais e
privadas, desenvolveu a Militant Liberty
Campaign, uma ação conjunta para inserir o tema da liberdade em alguns
filmes produzidos pelos estúdios de Hollywood de forma velada(14).
Assim, não apenas a liberdade, em suas mais diversas formas, era divulgada, mas
também a democracia era vendida como um valor universal.
Da mesma forma que
esses valores eram válidos para os cidadãos estadunidenses, eram também válidos
para todo o mundo. Tratava-se de valores aceitos e desejados por todos. Era
nisso que acreditavam e isso que queriam fazer que todos acreditassem através
de pronunciamentos, conferências e propagandas diversas.
Contudo, a maior arma
do americanismo em sua cruzada
universalista seria a cultura de consumo, vendendo seus ideais de forma
mesclada com os produtos, afinal, “[...] a publicidade, como o literato
conservador francês Georges Duhamel censurou, vendia não apenas os bens, mas
também os adjetivos para falar sobre eles. A capacidade de mudar os termos da
conversação sobre os bens básicos da vida era um poder imenso”(15).
E o poder não estava apenas na propaganda, mas nos produtos em si. “Máquinas de
costura, ferros elétricos, máquinas de lavar e utensílios de cozinha não eram
ninharias; eles alteravam profundamente os modos de viver, especialmente para
as mulheres”(16).
Essa característica
que os objetos possuem de transformar hábitos e mesmo subjetividades foi
discutira pelo historiador francês Daniel Roche, que propõe uma releitura do
consumo a partir dos objetos e dos valores culturais que eles adquirem na
sociedade. Esses valores dizem respeito à transformação do natural, do objeto
concreto em si, em algo cultural, usado na intermediação da relação homem /
natureza, como, por exemplo, a pedra nas sociedades ditas pré-históricas. Em
outras palavras, aos objetos é dada uma propriedade cultural histórica, que
possibilita aos indivíduos transformar a sua experiência(17).
Nesse sentido, Roche
traz à tona uma análise do consumo como uma forma do homem se relacionar com o
mundo. A partir daquilo que se produz e se consome, as pessoas passam a
perceber e experienciar esse mundo de uma forma diferenciada. Aspectos da vida
cotidiana passam a ser modificados a partir da interação de determinados
objetos com a vivência do real. As ideias de frio e calor, tempo, espaço, por
exemplo, mudam de acordo com novas invenções tecnológicas e os diferentes usos
dos objetos fazem as pessoas verem e perceberem o mundo de formas diferentes(18).
Os produtos,
portanto, na sociedade de consumo, com a participação ativa da propaganda
possibilitada por uma cultura que dá agência às imagens, uma cultura em que a
existência é visualizada, adquirem novos significados. A sua utilidade não
reside apenas no seu valor de uso ou troca, como queriam alguns críticos
marxistas, mas na sua capacidade de proporcionar novas sensações, possibilitar
novas experiências. As mercadorias passam a ter voz na construção de identidades
sociais e nos processos de subjetivação.
This is what media scholar Stuart Ewen has termed the commodity self, the idea that our
selves, indeed our subjectivities,
are mediated and constructed in part through our consumption and use of
commodities. Clothing, music, cosmetic products, and cars, among other things,
are commodities which people use to present their identities to those around
them(19).
Desse modo, difundir
os seus produtos industrializados por todo o ocidente não era apenas uma
demanda econômica para os Estados Unidos, mas também um dever civilizador.
Fazia parte da releitura do seu Destino Manifesto a partir da conjuntura
inaugurada no pós-guerra, onde a experiência é cada vez mais mediada por
imagens, com as quais a publicidade e o consumo irão se mesclar para oferecer
sonhos, prazeres e imagens. Logo, ao vender suas mercadorias, as indústrias
estadunidenses estavam prestando um serviço ao americanismo, pois, ao adquirir um desses produtos, os consumidores
não estavam apenas comprando o seu valor de uso ou a materialidade do objeto,
mas, mais que isso, também um uma cultura, um modo de vida.
Um modo de vida
cinemático, pois em constante movimento, cinematográfico, pois vivido nas e
pelas imagens, sinestésico, pois abusa da dinâmica dos sentidos na elaboração
das percepções. Uma sociedade do
espetáculo. Esse é o título da crítica situacionista de Guy Debord a essa
realidade cultural, em que as estruturas simbólicas da sociedade são
transformadas para dar passagem ao delírio
das imagens. Para Debord, a existência nesse momento foi enfraquecida
devido à industrialização da cultura, que fragmenta a vida real. Os indivíduos,
aí, perdem sua agência e passam a consumir, sem perceber, as imagens de tudo
aquilo que lhes falta na sua vida real. Uma existência vazia, ilusória, onde só
existe o espetáculo. Mas este não se resume a um conjunto de imagens, mas uma
“relação social entre pessoas mediatizadas por imagens”, diz o francês, e nele,
a mercadoria desempenha um papel de destaque: “O espetáculo é o momento em que
a mercadoria ocupou totalmente a vida
social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue
ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo”(20).
Debord percebe bem as
transformações processadas no ocidente com o final da segunda guerra mundial. A
sua sociedade do espetáculo reúne o
que venho discutindo como sendo a emergência de uma nova ordem do olhar que
traz as imagens para frente do palco para desempenhar um protagonismo na
experiência cotidiana, onde o consumo, integrado à visualidade, também ganha
novo dinamismo e importância, proporcionando aos indivíduos formas
diferenciadas de subjetivação e identidade. Nesse mundo, a realidade e
representação passam a ocupar o mesmo lugar no espaço, deixando de habitar
lugares distintos no regime de verdade.
Mas é justamente aqui
que a reflexão de Debord perde sua força. Tal como Baudrillard e também alguns
filósofos da Escola de Frankfurt, Debord interpreta o regime visual
contemporâneo como refém de uma indústria cultural que tanto cria como atende a
um público massificado, que, por sua vez, não consegue mais distinguir entre o
mundo real e o mundo do simulacro. Para muitos desses pensadores, essa
integração da visualidade com a indústria de massa é uma forma de dominação
capitalista, que mantém as pessoas reféns de ilusões, podendo, assim, ser
facilmente manipuladas.
Ora, devo insistir,
ao separar e hierarquizar realidade e representação, imagem e matéria, esses
autores não apenas deslocam a experiência contemporânea de sua historicidade
como também retiram a agência do expectador. A preponderância das imagens nesse
tempo não é um mecanismo maquínico, que surge por conta própria, como que de
forma maniqueísta e planejada, mas sim algo dinâmico e realizado pelo próprio
expectador; é um processo que atende às necessidades, anseios, desejos e
expectativas dos indivíduos na contemporaneidade. Nessa relação com o visual, o
indivíduo/expectador tira seu poder de ação e delega ação às imagens. Portanto,
a indústria de massas não funda culturas homogêneas; cabe ao indivíduo o seu
poder de transitar por seus produtos de forma a potencializar a sua
experiência. Isso não quer dizer que não haja uma cultura hegemônica, mas, ao
contrário, que dentro dela existe a ação do indivíduo, não sendo ele manipulado
de forma passiva. Todo indivíduo/expectador é um agente ativo de sua
experiência.(21)
A célebre frase acima
foi pronunciada por Juracy de Magalhães, primeiro embaixador brasileiro do
regime ditatorial iniciado em 1964, e é bastante representativa do momento em
questão. Com o golpe militar daquele ano, o Brasil anunciava para o mundo a sua
opção definitiva pelo bloco ocidental na conjuntura da Guerra Fria, e,
portanto, a aceitação do modelo americanista,
com seus valores e, principalmente, sua ordem visual.
O processo sedutor
que havia convencido muitos brasileiros durante a atuação do OCIAA na década de 1940, ganha nova
roupagem no período do pós-guerra. Mesmo
sem contar mais com uma estrutura organizada e direcionada a atrair o público
brasileiro para o seu modus vivendi,
a diplomacia estadunidense teria, todavia, aliados de peso na cultura de
consumo e no regime visual.
É claro que nada
disso era uma completa novidade. O relacionamento de intensa proximidade entre
as duas nações durante a segunda guerra mundial já havia conseguido consolidar
os Estados Unidos enquanto um paradigma de liberdade, democracia e modernidade.
Inclusive a partir de mecanismos visuais.
A ação interativa do cinema fixava no imaginário brasileiro a imagem dos
heróis americanos. O processo de americanização pelo cinema efetivava-se no
mercado. Nos objetos anunciados na imprensa, seria possível identificar uma
relação perfeita entre a noção concreta do próprio objeto e sua representação.
O americanismo no significado e no significante. Anúncios ou reportagens
pareciam muitas vezes reproduzir, tanto na propaganda ilustrada como no próprio
texto, cenas de filmes(22).
Entretanto, as
transformações ocorridas naquele país após as duas bombas atômicas e os acordos
de paz e, principalmente com o início da Guerra Fria, tiveram grandes reflexos
políticos e, especialmente culturais. Esses reflexos se fizeram sentir em todo
o mundo ocidental. No Brasil não seria diferente. As novas demandas
estadunidenses chegariam em território nacional e seriam reinterpretadas e
readaptadas ao cenário local a partir dos desejos e necessidades do momento.
Qual seria, então a leitura brasileira do American way of life nesse momento?
Iniciemos, tal como na seção anterior, com uma imagem.
Imagem
3. Fotografia. Faz parte
de uma reportagem da edição de 17 de maio de 1952 de Manchete intitulada “Descobridor de Estrelas”.
Fonte: Manchete,
17 de maio de 1952.
A fotografia da Imagem 3 faz parte de uma reportagem
da edição de 17 de maio de 1952 de Manchete
intitulada “Descobridor de Estrelas”, que procurava apresentar os perigos dos
falsos caçadores de talentos para as garotas aspirantes ao mundo das estrelas
no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras. A escolha da revista pela
imagem da a atriz estadunidense Sheree Bessire é significativa. Ela está
sentada, trajando um biquíni, com uma das mãos apoiada sob a mesa e a outra
segurando acima da cabeça um protótipo de foguete. Seu olhar está voltado para
o alto, fixo na mesma direção que o foguete em sua mão. Seu semblante sereno e
sorridente; um sorriso alegre e confiante. Mas que confiança seria essa? Para
onde mira tão fixamente a modelo?
Aqui podemos ver uma
perfeita representação do ideal americanista
em sua interpretação hegemônica no Brasil. O uso da modelo estadunidense já
deixa entrever um ideal estético, o paradigma do belo: mulheres brancas,
loiras, com porte corporal médio e um corte e penteado muito semelhante ao das pinup girls estadunidenses(23).
Este ideal podia ser visto na maior parte das fotografias de modelos nas
principais revistas em circulação, nas campanhas de publicidade e,
especialmente, no imaginário masculino do período.
Aliás, o público
masculino brasileiro foi rapidamente cooptado pela beleza das atrizes e modelos
estadunidenses, como narra a cronista Laura Suarez:
[...] Encontrei-a hoje à tarde e impressionou-me seu abatimento moral.
Investiguei. Por incrível que pareça, Clarinha havia brigado com o marido por
causa da Joan Crawford.
‘Não é que eu tenha ciúmes de uma estrela de cinema. Também não sou tão
desfrutável assim. Mas é que às vezes a gente transborda. [...] Não é todo dia
que a gente está disposta a receber pontapés’. Eu estranhei: ‘Mas Carlos, tão
boa pessoa, que foi isso?’. Ela ergueu os ombros carnudos. ‘Maneira de falar.
Mas esses homens são de amargar. Todos, minha filha. Não se salva um. A gente
se mata por eles de amanhã à noite e o prêmio é esse: ingratidão. Pensa que
reconhecem alguma coisa? Nunca. Sacrifício para eles é obrigação. Uns
miseráveis’. Eu pedi que ela deixasse de generalizar e falasse do Carlos. ‘Mas
é dele mesmo que estou falando. Imagine que ontem nós fomos ao cinema. A tal da
Crawford. Na saída, o que é que você pensa que ele me disse, com os olhos todos
derreados?’ ‘Aquilo é que é Mulher’. Cínico! Se isso é coisa que se diga na
minha cara! [...] Desaforo. Fiquei furiosa, é claro. Respondi: ‘Não diga. E o
que você tem em casa o que é?’ Ele nem se deu por achado. Estava com uma cara
de pateta, levou dez minutos para atravessar a rua. ‘Que corpo, hein?’ Eu
concordei: ‘é, para quem gosta de osso.’ Ele ficou meio ofendido: ‘Osso? Que
absurdo. Ela tem um corpo formidável. Isso é mágoa sua.’ Você acredita? Mágoa.
Ah, não lhe disse mais uma palavra. Nem hoje de manhã. E quando ele chegar a
noite vai ser a mesma coisa. Estúpidos(24).
Esse exemplo retrata
a popularidade e aceitação da estética estadunidense quando o assunto era
beleza feminina. Não era incomum a associação, em campanhas publicitárias de
produtos de beleza, do belo com limpeza e jovialidade. Modernidade, atualidade,
juventude e beleza eram valores ligados ao paradigma estético estadunidense.
As estrelas de
Hollywood, como Elisabeth Taylor, Joan Crowford e muitas outras, seriam a
inspiração para muitas mulheres na procura de produtos que as tornassem mais
belas e na composição dos modelitos que iriam vestir.
Sr. Eduardo Alijó, quais são as preferências das mulheres brasileiras da
classe média em seus estabelecimentos de modas? –A fim de melhor responder à
vossa pergunta, pedimos permissão para tecermos as seguintes considerações: A
mulher brasileira, especialmente a carioca, representada na sua maioria pela
classe média, tem a verdadeira concepção
de elegância, pois está a par de tudo que surge de novo no domínio da moda
e tem o seu sentido prático para a
escolha do seu vestuário, preferindo as linhas
simples dos vestidos e costumes, porém, com exigências em relação a pequenos detalhes que completam o seu
vestuário e a prática nos ensinou ser o mais difícil. Temos observado que,
sendo graciosa no andar, não encontra dificuldade de completar sua elegância
natural, comprando vestidos prontos,
sem qualquer prova, mediante apenas uma pequena retificação, o que lhe permite
comprar por preço mais acessível o seu vestuário. Acompanhando a tendência
elegante da mulher brasileira, nos esforçamos na apresentação constante de
vestidos e costumes de linha moderna, baseados nos modelos europeus e americanos, aos quais damos um cunho todo nosso,
tudo dentro de uma elegância sóbria que agrada sempre a classe média [...](25).
A reportagem
demonstra como a mulher brasileira possuía a verdadeira concepção de elegância
e beleza, com base nos modelos americanos,
mais sóbrios e práticos, como a vida naquele país pretendia ser. Mas a questão
não para aí, havia ainda um novo hábito: a compra dos vestidos prontos.
A chegada das grandes
lojas de departamentos, adequadas ao momento vivido de mais rapidez e
praticidade na vida cotidiana, trazia consigo não apenas outro ideal de vestir,
com peças pré-moldadas segundo padrões industriais, mas também novas relações
de trabalho, perdendo, as antigas costurarias particulares, espaço para as
grandes marcas que valorizavam o trabalho serializado, e, principalmente, novos
hábitos de consumo. Os brasileiros entravam efetivamente no modelo de vida
ocidental.
Para além da
inspiração estética, os Estados Unidos também eram um paradigma tecnológico.
São comuns as referências ao desenvolvimento tecnológico estadunidense,
especialmente no que diz respeito ao programa espacial daquele país, que, no
mundo ocidental, se tornou um exemplo de avanço técnico-científico. Enquanto
isso, os passos soviéticos eram pouco comentados e muitas vezes interpretados
de forma a colocá-los de forma negativa.
É o que vemos na matéria “O Sol é o Limite”, de Manchete, em 21 de março de 1959.
A reportagem
maciçamente ilustrada, narra o lançamento do satélite Juno II.
Pouco antes da meia noite, a enorme torre começou a mover-se, deixando
livre o foguete de sessenta toneladas. A contagem terminou na madrugada do dia
3: a cauda de fogo foi crescendo, à medida que Juno II ganhava altura, levando
no nariz um satélite dourado de seis quilos. No Cabo Canaveral, funcionários
americanos esperaram as duas horas necessárias, para anunciar o êxito da prova:
os EUA iam ter seu planeta artificial(26).
A matéria continua em
tom de contentamento e destaque ao sucesso estadunidense. Na página seguinte,
informa: “O esforço americano em direção a lua, feito com liberdade quase absoluta de informações, sempre pareceu maior que o soviético, por uma razão
muito simples: somente um foguete lunar bem sucedido devolveria aos Estados
Unidos o prestígio perdido com o sucesso russo no lançamento dos satélites
artificiais”. (Grifos meus). Depois passa a narrar os passos do programa
espacial estadunidense em seus sucessos e fracassos, sempre em comparação com o
lado soviético. Ao final, a reportagem conclui: “Com o Pioneiro IV, os Estados
Unidos completaram um total de nove satélites e duas sondagens lunares. A
estatística é possível porque os sucessos e fracassos puderam ser documentados
livremente” Apesar de anunciar um aparente sucesso russo, o periódico fazia
questão de enaltecer a liberdade estadunidense, que não esconde informações. Ou
seja, o sucesso só se deu após alguns fracassos, como é comum na livre
iniciativa, onde o erro também deve ser valorizado como um passo necessário
para se chegar ao objetivo final. Isso tornava a vitória estadunidense maior
que a do seu rival.
Em suma, o Brasil
entrava definitivamente na esteira do modelo ocidental. As noções de beleza e
moda seguiam os ditames da estética e da indústria estadunidense, propaladas
pelos meios de comunicação e diversão de massa, como o cinema e, especialmente,
a televisão. Também vinha do Norte os modos de consumir e, consequentemente, de
viver o cotidiano, uma vez que esta era uma prática definidora dos modos de
experienciar na contemporaneidade. Os produtos que entravam nas casas traziam
com eles valores culturais, ideais estéticos, formas de sentir, ver, sonhar,
enfim, ser e estar no mundo.
Tudo isso enquadrava
os limites de ação e também imaginação dentro da lógica bipolar. As peças
publicitárias, as revistas, o cinema, a televisão, enfim, os mais diversos
meios de comunicação lembravam a todo momento as vantagens do mundo ocidental
diante dos horrores do outro lado do
mundo. Não havia debate, a coisa já estava ali, dada como verdade
inquestionável. Pensar diferente era estar do outro lado, era ser uma forma de
replicante, espécime banida da terra e que deveria ser temida e combatida a
qualquer custo, para fazer uma analogia com os androides de Ridley Scott em Blade Runner.
Com a renúncia de
Jânio Quadros e a chegada de João Goulart à presidência da república, figura há
muito identificada com as questões trabalhistas e ligado aos ideais da esquerda
urbana brasileira, essa situação se evidencia. Eram os anos 60, a Revolução
Cubana havia direcionado um importante porto de influência estadunidense nas
Américas para as hostes soviéticas. Os medos e ânimos se exaltaram. Temia-se
uma nova Cuba em solo nacional. E também no campo político os interesses
brasileiros e estadunidenses convergiam. É nesse contexto que a Escola Superior
de Guerra, criada em 1949 seguindo o modelo do National War College estadunidense, passou a ter um diálogo mais
direto com a diplomacia estadunidense, da mesma forma que o Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), fundado em 1959 com vistas a combater o
comunismo no país e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), fundado
em 1961, com objetivos similares. Essas instituições formavam um grande
complexo de divulgação dos ideais ocidentais, especialmente aqueles inspirados
no americanismo, e de cerco ao
comunismo, através, principalmente, de propagandas.
Assim, a partir do início dos anos 60, como produto dessa ofensiva dos
grupos econômicos dominantes, as revistas passaram a veicular diariamente uma
quantidade espantosa de artigos e matérias exortando o comunismo, e fazendo a
apologia das liberdades individuais e da iniciativa privada. No centro de tudo
isso estava a palavra liberdade(27).
Aliados aos valores
de liberdade, democracia e
individualidade, outro princípio intimamente relacionado ao americanismo que seria enaltecido era o
da livre iniciativa. Valorizava-se o esforço pessoal e o trabalho na busca do
sucesso e felicidade na vida, que, se não se confundiam, ao menos dependiam
essencialmente de uma vida financeira estável que garantisse a possibilidade de
escolha de todos os bens necessários a uma vida confortável. É essa a ideia da
peça publicitária paga pelos Diários Associados e divulgada na O Cruzeiro em maio de 1962.
Já no cabeçalho um
chamado: “Defenda o seu direito de progredir: defenda a livre iniciativa”. Logo
abaixo, a imagem de um homem a procura de emprego. O ângulo da fotografia é
estrategicamente escolhido para fazer o leitor identificar-se com a mensagem,
sentindo-se dentro da imagem; era como se fosse ele próprio a procura de
emprego. Por fim, um recurso cada vez menos comum na publicidade dentro do
regime visual contemporâneo: o uso de textos longos. Mas aqui ela
justificava-se: utilizava-se um recurso tradicional para convencer o leitor da
importância de um valor também tradicional: o trabalho. Assim, argumenta-se que
o trabalhador, no regime de livre iniciativa, tem sempre “[...] o caminho livre
[...] para atingir honrosamente às posições a que tem direito”. Nesse tipo de
sociedade, a liberdade é plena, até mesmo para “escolher o patrão, ou o emprego
que melhor convier ao seu desejo de progredir”. As quatro liberdades básicas
são exaltadas ao fim “a de trabalhar, a de produzir, a de vender e a de
comprar”. A alusão é direta ao imaginário do self made man, arraigado na sociedade estadunidense, ou seja,
aquele indivíduo que, por esforço próprio e dedicação intensiva ao trabalho,
conseguiu erguer-se na vida e superar todos os obstáculos encontrados.
Todos esses
princípios, portanto, estariam embutidos das mais diversas formas no cotidiano
do cidadão comum no Brasil. Fosse através dos produtos que consumia, das
revistas que lia, dos programas de televisão ou filmes aos quais assistia, eles
estariam lá, como um uníssono a relembrar o caminho das “escolhas corretas”. No
mundo comunista, nada disso se fazia presente.
Imagem 4. Logo abaixo, a imagem de um homem a procura de
emprego.
Fonte: O Cruzeiro, 5 de maio
de 1962.
É o que vemos em
outra peça publicitária do mesmo anunciante, Os Diários Associados, veiculada
em O Cruzeiro de 27 de outubro de
1962. Aí está presente um importante retrato da visão do mundo desejável,
livre. A propaganda de página inteira traz em letras capitais e ocupando metade
da folha o dizer: o que você diz sobre
isto? Logo abaixo, em fonte um pouco menor: o automóvel, a liberdade e o bem-estar. Seguindo a página em fonte
pequena e em três colunas, o texto reproduzido abaixo.
Não há nenhuma utilidade ou instrumento de conforto criado pelo homem
que exprima tanto o nível de vida atingido pelo indivíduo como o automóvel.
Pois, o “carro da família” é a primeira coisa que ele compra, logo que seu
nível de salário ou rendimento já lhe permitiu comprar a geladeira, o rádio, a
eletrola, o aparelho de TV e outros aparelhos domésticos. Todos sabem que os
comunistas, invertendo a ordem humana das coisas, procuram dizer que o mais importante
não é a liberdade, mas o bem-estar econômico do cidadão. Pois bem, estes
números sobre a existência de automóveis no mundo provam de modo claro e
irrespondível que os povos dos países comunistas, além de perderem o bem
supremo da liberdade, vivem nas mais atrasadas condições de conforto e nível de
vida(28).
Após ter chamado a
atenção do leitor/expectador, a página seguinte trazia dados numéricos como que
para corroborar de forma inquestionável o que se afirmava. A organização do
texto também merece destaque: ela começa com letras menores e vai aumentando
para, finalmente, destacar, de forma segmentada, o texto principal, que trata
sobre o Brasil.
7 milhões de
venezuelanos têm 7 vezes mais carros que os 700 milhões de “felizes” chineses e
comunistas.
Os 4 milhões
de bolivianos (considerados entre os povos mais pobres do mundo livre) têm mais
automóveis (13.000) que os 14 milhões de habitantes da Romênia, uma das
“estrelas” do mundo comunista e onde há apenas 10.000 carros.
1 carro para cada
1.000 habitantes do mundo comunista.
1 carro para cada 135
habitantes da Alemanha Comunista.
1 carro para cada 11
habitantes da Alemanha Ocidental (Livre)
Além de serem livres, os 72 milhões de brasileiros já têm tantos
automóveis (650.000) quanto os 220 milhões de habitantes da Rússia (“Paraíso”)
comunista –e têm 20 vezes mais automóveis que os “felizes” 700 milhões de
chineses vermelhos(29).
Mais uma vez o
discurso é claro, sem entrelinhas: é possível se medir a felicidade a partir do
que se tem e o padrão de vida ocidental proporciona maior felicidade que o seu
rival, visto como negativo e limitador das liberdades. O uso da ironia é
constante, referindo-se aos países socialistas com adjetivações positivas entre
aspas, como que a relativizar a verdade dessas afirmações. Também faz-se
questão de diferenciar as Alemanhas, não a socialista e a liberal, mas a
comunista e a livre.
Por meio dessa estratégia, os textos das revistas confundiam de tal
forma os termos liberdade, democracia e capitalismo de um lado, e escravidão,
totalitarismo e comunismo de outro, que criavam verdadeira incompatibilidade entre
os dois conjuntos, a ponto de eliminar qualquer possibilidade de se imaginar
que um dia pudesse existir uma sociedade que fosse ao mesmo tempo democrática e
não capitalista. Tanto é assim que se tornou hábito designar pela expressão
“mundo livre” os países capitalistas e, por consequência, associar o regime
comunista à ideia de ausência de liberdade(30).
A liberdade era o
valor máximo da vida no ocidente. E não era à toa: esse era (e continua sendo!)
o valor supremo, mito fundacional da nação estadunidense. Desde sua
independência, todos os esforços, todas as lutas tinham por princípio a defesa
da mesma. Esse é o primeiro princípio que une as 13 colônias em torno do mesmo objetivo,
como já atestava a primeira bandeira representativa dessa união: um tecido
quadrado com a palavra Liberty ao
centro(31). Portanto, tolher a liberdade é tolher a razão da própria
existência. Para os Estados Unidos e para todo o Ocidente. E, especialmente na
era da bipolaridade, nada melhor para representar esse valor supremo que a
liberdade de consumir. Suprimir isso era também suprimir a felicidade, a
alegria. Os produtos trazem (ou prometem trazer) essa satisfação. Consumir era
uma ação de cidadania e de querer bem, como faziam crer as propagandas que
incentivavam a compra de produtos para serem dados como presente.
Por fim, retomemos a
imagem 3. Tomei-a, aqui, como representação coesa da leitura hegemônica do americanismo no Brasil, pois, a meu ver,
ela consegue englobar todos os arquétipos apresentados e discutidos aqui: a
liberdade em suas múltiplas formas e expressões, o paradigma
técnico-científico, a universalidade do ocidente, a cultura de consumo e todas
as suas transformações sociais e subjetivas-vale lembrar: a modelo está vestida
em um biquíni da moda e sapatos altos e elegantes. Seu sorriso traz a alegria e
o bem-estar que, na sociedade de consumo, os produtos prometem proporcionar.
Todavia, o que torna a imagem ainda mais significativa do período é a sua
visualidade: é o olhar fixo da atriz em um horizonte ao alto, talvez distante,
mas seguro, tranquilizador. Um futuro dentro do espectro presentista. É um
olhar que mira o céu, ou melhor, um norte, um exemplo a seguir, algo
incontestável, uma certeza. O foguete nas mãos indica essa direção, assim como
o conjunto visual da fotografia: o American
way of life. Daí a serenidade da expressão e a alegria e confiança do
sorriso. O Brasil havia descoberto uma estrela brilhante pela qual poderia se
guiar.
A proposta deste
artigo foi discutir como os valores americanistas se fizeram presentes na
construção de um paradigma cultural ocidental, ou, na formação de uma
Comunidade Imaginada chamada de Ocidente. Melhor dizendo, como a ideia de
Ocidente passou a ser agenciada para referir-se a uma comunidade imaginada
baseada nos valores americanistas no Brasil a partir do Pós-Guerra. Isso se
fez, também, a partir de uma subjetivação imagética, ou seja, a construção de
uma visualidade, dado que acredito ter demonstrado, ainda que de forma inicial,
nos limites deste artigo.
Revista O Cruzeiro (Edições de 05/05/1962 e
27/10/1962)
Revista Manchete (Todas as edições de Maio,
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São Paulo: Hucitec, 1998.
Notas
1 Apesar de não se
tratar de palavra estrangeira, o termo será utilizado em itálico neste artigo
por uma questão política. Acredito que o substantivo América e seus adjetivos
correlatos sejam mais amplos que a realidade estadunidense. Contudo, por
tratar-se de um conceito já estabelecido na historiografia, optei por
utilizá-lo, mas deixando-o em destaque.
2 A referência aqui é
ao conceito desenvolvido por Benedict Anderson, ainda que em contexto e
situação distintos. A analogia se faz possível pois, tal como Anderson pensa o
conceito de nação, a formação de um bloco hegemônico que partilha de
instituições econômicas, militares e culturais, também possui um sentimento de
pertença comum que tem raízes em uma construção cultural. Assim, percebo a
ideia de Ocidente ou Mundo Ocidental, como uma construção imagética, que não
possui organização política, fronteiras definidas ou mesmo uma história comum,
mas baseia-se numa partilha de valores, ideais e sentimentos de pertença comuns,
ou seja, de uma imagem mental de unidade. Isso não implica dizer que ela seja
ilusória ou irreal. Ao contrário, ela se realiza no campo do simbólico e nele
constitui subjetividades. Em última instância, para citar Anderson, “[...] ela
é imaginada pois, mesmo os membros da mais minúscula nação jamais conhecerão,
encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora
todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. Anderson,
Benedict. Comunidades imaginadas.
Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (São Paulo: Cia das
Letras, 2008), p. 32. Cabe ressaltar, no entanto, que tal comunhão não suplanta
outras comunidades imaginadas, tais como a nação ou outras existentes dentro
dessa mesma comunidade, mas funciona em diálogo e, por vezes, em conflito com
estas. Por fim, é preciso dizer que existe uma longa discussão a respeito da
construção do Ocidente, desde o período da Antiguidade Clássica e não estou
querendo supor uma originalidade dessa construção no período do Pós-Guerra, mas
sim, destacar esse período como um marco histórico de transformação na ideia e
escopo da imagem do Ocidente, que passa a ser associado aos valores do americanismo.
3 Note-se que
utilizei aqui o conceito gramsciano de hegemonia, o que implica dizer que tal
modelo, contudo, não era único e sofreu resistências políticas e culturais.
Contudo, fez-se presente como o principal e mais divulgado pelos meios oficiais
da imprensa nacional e hemisférica.
4 Dentre tais
trabalhos, mas não limitados a estes: Falivene Alves, Júlia. A invasão cultural
norte-americana (São Paulo: Ed. Moderna, 1988); Bandeira, Moniz. Presença dos
Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978); Donghi, T. H. Historia Contemporánea de América Latina
(Madrid: Alianza Editorial, 1969); Dorfman, Ariel e Mattelart, Armand. Para
leer al Pato Donald (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2003); Chomsky, Noam. O que o Tio Sam realmente quer (Brasília: Ed. UnB,
1999).
5 Órgão criado em
1940 pelo governo F. D. Roosevelt com o objetivo de, através de um esforço
conjunto de produção cultural, estreitar os laços entre as nações do continente
Americano dentro da lógica da Política da Boa Vizinhança.
6 Tota, Antônio
Pedro. Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda
Guerra (São Paulo: Cia das Letras, 2000), p 19.
7 Para maiores
informações a respeito da águia enquanto representação da liberdade no
imaginário estadunidense: Hackett Fischer, David. Liberty and Freedom: a visual history of America’s
founding ideas (Oxford Univesity Press, 2005).
8 Holloway, David e
Beck, John. American Visual Cultures (London, New York: Continuum, 2005), p. 2.
9 Essa não era a
única visão sobre o consumo na sociedade estadunidense. Como aponta Glickman, a
questão era bastante ambígua e controversa, havendo os que defendiam o ato de
consumir com os valores individuais e a saúde da economia, mas também os que
apontavam os males da desigualdade econômicosocial. Glickman, Lawrence B. Consumer society in American
history: A Reader (Cornell University Press, 1999).
10 Existem diversas
discussões a respeito de se seria a vida simples a verdadeira base do espírito
estadunidense ou, ainda, este estaria mais relacionado à vida material e
prosperidade iniciada pelos primeiros fundadores da nação. Para mais a esse
respeito: Glickman, Lawrence B., Op. Cit.
11 Tal assunto é
estudado no livro Figueiredo, Camargo Moraes, Anna Cristina. “A Liberdade é uma
calça velha azul e desbotada”, em Publicidade, Cultura de Consumo e
Comportamento Político no Brasil (1954-1964) (São Paulo: Hucitec, 1998).
12 De Grazia,
Victoria. Irresistible empire: America’s advance through 20th century Europe
(Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2005), p. 239.
13 Defendo que o Plano
Marshall foi o braço econômico e a OTAN o braço político e militar da
construção de uma comunidade imaginada popularizada como Mundo Ocidental. Além
dessas iniciativas culturais também divulgavam uma cultura partilhada e comum
entre todas as nações desse grande bloco, dando corpo e substância à
comunidade. Parte dessa discussão está diluída neste artigo.
14 Para mais
informações sobre a Militant Liberty Campaign e outras iniciativas da chamada
Guerra Fria Cultural: Stonor Saunders, Frances. The Cultural Cold War: The CIA and the world of arts
and letters (New York: The New Press, 2000).
15 Gracia, Victoria de. Op Cit., p. 238.
16 Ibid, p. 133
17 Roche, Daniel.
História das Coisas Banais: o nascimento do consumo nas sociedades do século
XVII ao XIX (Rio de Janeiro: Rocco, 2000), p. 19.
18 Ibíd., p 20.
19 Sturken, Marita e
Cartwright, Lisa. The practices of looking. An introduction to Visual Culture
(Oxford University Press, 2001), p. 198
20 Debord, Guy. A
Sociedade do Espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997), p. 30.
21 Estou considerando
o conceito de agência aqui de acordo com Anthony Giddens, para quem os
indivíduos possuem a capacidade de viver a experiência social de forma
subjetiva, concebendo formas de enfrentar a vida, mesmo quando sofrendo diferentes
formas de violência institucional. Assim, como já explicitado anteriormente
neste artigo, acredito que cada espectador é um sujeito único, que age sobre os
discursos hegemônicos podendo endossá-los, reinterpreta-los, recusá-los ou
mesmo ignorá-los. Para mais a respeito do conceito de agência vide: Giddens,
Anthony. A Constituição da Sociedade (Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2003).
Sobre espectador/espectadorismo: Sturken, Marita e Cartwright, Lisa, Op. Cit.
22 Tota, A. Pedro, Op
Cit., p. 132.
23 O termo pin-up
significa algo a ser exposto, colado na parede. A sua associação a garotas
surgiu no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando algumas modelos, entre
elas Betty Grable, passaram a posar para fotografias sensuais destinadas aos
soldados em combate. Essas fotos seriam exportas nas paredes dos alojamentos
dos soldados. Após a popularização, o termo passou a denotar uma estética
específica, com determinadas poses, cortes de cabelo e estilo de vestir. A
questão da sensualidade, no entanto, também está associada às pinups, e,
portanto, não é incomum o uso do termo para imagens e modelos anteriores ao
período aqui descrito.
24 Suarez, Laura.
“Sem título”, em Manchete, 5 de julho de 1952.
25 “O Brasil
Pergunta”, em Manchete, 31 de maio de 1952. Grifos meus
26 Manchete, 21 de
março de 1959.
27 Moraes Figueiredo,
A. C., Op Cit., p. 126.
28 O Cruzeiro, 27 de
outubro de 1962.
29 Ibíd.
30 Figueiredo, A. C.
Moraes, Op Cit., p. 129.
31 A liberdade é um
dos valores fundacionais da nação estadunidense. Existem diversas discussões a
respeito da transformação desse valor em um mito nacional que persiste ao longo
de toda a história dos Estados Unidos da América. Para mais a esse respeito:
Hackett Fischer, D., Op Cit.